São Paulo, domingo, 26 de outubro de 1997
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

A experiência da experiência

ARTHUR NESTROVSKI
ESPECIAL PARA A FOLHA

O regresso à infância, não só pela narrativa, mas na própria linguagem, artificiosamente equilibrada entre dois tempos, é a maior virtude desse lindo livro de Leila Berg, "Flickerbook" (Granta, 240 págs., 15,99 libras). Um "flicker-book" é um livro em que cada página traz um desenho um pouco diferente da anterior, produzindo a sensação de movimento quando se passam as páginas bem rápido. O que se vai ler, também, é um "cineminha", uma biografia animada, em centenas de pequenas vinhetas, sucedendo-se parataticamente umas às outras.
Não há como fazer justiça à extraordinária capacidade de Leila Berg (conhecida, até hoje, só como autora de livros infantis) para nos jogar dentro da consciência de uma criança. Os cinco sentidos, e o sexto, vão acordando de novo em cada um de nós, com a força ilusória de uma primeira vez. Cada memória resgatada, cada relance é como um talismã, um instrumento para nos fazer sentir alguma coisa de novo, antes que a repetição e as defesas cubram a percepção com o véu da indiferença.
"Idealmente, toda impressão deveria sempre ser uma primeira impressão", escreve Geoffrey Hartman, num ensaio sobre arte e trauma ("The Longest Shadow", Indiana University Press). E as narrativas literárias, se, por um lado, correm sempre o risco de anestesiar o evento, traduzindo tudo para o domínio do conhecido, impondo uma trama e uma lógica ao que pode não ter nenhuma das duas, por outro tem a capacidade de abrir uma porta exatamente para a renovação da experiência. É a narrativa que permite, afinal, a experiência da experiência, se é que isso se pode dizer; a possibilidade de transformar o real em alguma coisa que não seja só o trauma e sua posterior higiene, ou esquecimento.
O transe quase hipnótico a que o Velho Marinheiro de Coleridge submete compulsivamente seus ouvintes, repetindo uma história traumática, serve de emblema para a relação universal entre narrador e leitor. O trauma se transmite por contágio. Esse conhecimento precisa ser atualizado sempre, num sistema de circulação do qual também faz parte o crítico e seu leitor. Narradores e leitores vão se substituindo, num "flicker-book" próprio, em que cada um é a testemunha de uma verdade que necessariamente lhe escapa, embora se manifeste, mais uma vez, na sua ausência.
A frustração, ou perda da linguagem, é uma característica dessas histórias, que não se deixam conter pelo pensamento, pela memória ou pela palavra. A experiência é duplamente frustrante no relato autobiográfico, no qual o sujeito é incapaz de apreender a si mesmo. No que toca aos fatos, porém, não é exatamente a perda, e sim a progressiva construção da linguagem, até o limiar da vida adulta, que constitui a narrativa do livro de Berg, em que o vocabulário e a sintaxe vão se metamorfoseando no ritmo do corpo da menina-autora.
Mas essa biografia linguística tem ambições mais altas do que o virtuosismo formal. Palavras e silêncios deixam-se apanhar num teatro afetivo aterrador: um mundo de incoerências, injustiças, pura estupidez, violência e incompreensão; redimido em parte, apenas, pelas felicidades da percepção, do pensamento, da arte e da ação responsável. Em suma, uma infância igual às outras.
E uma infância como nenhuma outra, porque retorna e nos dá a possibilidade de estarmos presentes, de testemunhá-la uma segunda vez, mesmo se essa não seja exatamente a nossa história. Uma menina judia, no interior da Inglaterra, na década de 20, tem sua dose particular de sofrimento para dar conta.
1921: "Papai nunca fala comigo. Ele só mora na mesma casa". A distância do pai é um "Leitmotiv" dos 3 aos 18 anos. 1936: "De alguma forma eu preciso me relacionar com esse homem que nunca falou comigo, durante quase toda minha vida, um homem que simplesmente vivia na mesma casa, e que é o meu pai". O lamento de Blake Morrison, em "As If", sobre a corrente "era dos maus pais" (pressionados pelo trabalho e pelas contingências de múltiplas famílias), parece um canto de devoção paterna, comparado aos rigores de uma educação feminina infantil no início do século. E o fracasso, parcialmente remediado no fim, da relação da menina Leila com o pai serve como portal de ingresso para a repetição, em imagens mentais, da violência geral dos adultos contra as crianças.
"A gente tem um açoite pendurado num prego na porta da cozinha. É para bater nas crianças." Dez anos: "Como é que os adultos podem ser assim! Parece uma conspiração. As pessoas juntas. Contra as crianças". Em casa, na escola, na rua: a ameaça constante de maus tratos é o suficiente para nos deixar de cabelo em pé. Mas que pai não é culpado e não se arrepende de sua dose de intimidação? Vista pelos olhos da criança sensibilíssima, uma cena quase prosaica assume dimensões virgilianas, que talvez tenha mesmo, se o que está se medindo é o efeito e não a causa. "Acho que os adultos são loucos. Não só cruéis, mas loucos. (...) E são eles que estão no comando!"
A violência assume contornos mais peculiares quando entra no mundo de Leila uma dimensão nova. Seis anos: "Ontem dois meninos me pegaram no pátio da escola e ficaram batendo minha cabeça contra o muro, e disseram: 'Por que você matou Jesus?' Não sei quem eles pensaram que eu era. Minha cabeça está doendo". A história lúgubre do anti-semitismo europeu, aqui em versão moderada inglesa, é uma das tantas outras narrativas que vão ganhando molde à medida que esses fragmentos de vida passam e os momentos de tempo se tocam ao longo dos anos.
A batalha de gêneros também começa cedo, para essa menina revoltada com a exclusividade masculina do "bar-mitzvah" e as obrigações que cabem a uma irmã com relação ao irmão, ou uma esposa-mãe com relação ao marido-pai. Aos 18 anos, a feminista mirim já se tornou uma contemporânea mais avançada de Virginia Woolf: "Sou eu que escolho meus homens".
O surpreendente, diante de tanta iniquidade inicial, é a capacidade de a menina se espantar com um mundo novo ao redor, das cores e luzes da primeira infância, texturas e ritmos e sensações, passando pela descoberta maravilhosa da música, até a conquista da leitura e da escrita, das regras sociais e, já bem mais tarde, da atividade política. "Não consigo me mexer. Não consigo dizer nada" é sua reação habitual à crueldade. Escrever, então, "é como sair para dar um passeio, bem longe das surras e da gritaria", diz ela aos sete anos.
Escrever agora, aos 69, é também um passeio para dentro das surras e da gritaria; mas generosamente harmonizado com a percepção concreta dos detalhes, materiais e humanos, que a menina e adolescente coleta com o fervor de uma criança boa. Momentos de beleza e calma, idéias que se compreenderam, gestos de carinho ficam gravados como amuletos, memórias wordsworthianas que a protegem da malevolência dessa vida em modo menor. "Ser cordial", a modalidade de resistência diária do poeta Brecht ("O Primeiro Olhar pela Janela de Manhã") parece uma conquista inesperada, quando há tanto motivo para não ser. Parece um destino, como queria Freud, mais do que uma decisão.
Tantos detalhes concretos, passando vivamente no cinematógrafo de letras, remetem, a seu modo, à natureza não-simbólica de sonhos e lembranças traumáticas. Sua literalidade bruta é um impedimento à conceitualização. O indivíduo traumatizado carrega lembranças em estado primitivo, chapas impressas de algo incompreensível, como se ele fosse um transmissor, apenas, daquilo que é incapaz de elaborar. "A força da experiência parece surgir precisamente do colapso do entendimento", escreve Cathy Caruth (na introdução a "Trauma - Explorations in Memory", Johns Hopkins University Press). Mas, para o leitor, aqui, a literalidade aparece com o sinal invertido. Quanto mais concreta a observação, especialmente nos primeiros anos da narrativa, mais sugestiva e rica, mais sedutora para o trabalho da leitura.
O conhecimento postergado, que fica a cargo do leitor, a incompletude de significado que nos cabe agora multiplicar alinha as memórias de Leila Berg com outras narrativas (de Georges Perec a Aharon Appelfeld, de Duras e Resnais a Ida Fink e Jorge Semprun), em que é a irresolução de sentido que preserva, justamente, o que não pode jamais se deixar transformar numa história, ou apenas numa história. Se ela não tem, afinal, a força de liquidar a consistência da própria fala, se não chega, ao término do livro, a ultrapassar seus próprios meios, para além da imitação da fala, isso não diminui a eloquência, ou resistência de palavras em crise, compulsivamente em busca de uma compensação para a falta de palavras.
O livro termina com duas mortes, dois namorados perdidos na campanha da Brigada Internacional, em guerra contra Franco na Espanha. Termina, mais precisamente, com o silvo do primeiro alarme antiaéreo, em pleno centro de Londres. Amigos se separam, sem saber o que dizer. Leila pega um ônibus calada. Acabou uma juventude. O que vem pela frente está além do que ela pode lembrar, ou narrar.

Onde encomendar: "Flickerbook" pode ser encomendado à Livraria Cultura (av. Paulista, 2.073, tel. 011/285-4033) e, no Rio de Janeiro, à Livraria Marcabru (r. Marquês de São Vicente, 124, tel 021/294-5994).

Texto Anterior: A ineficácia da dialética
Próximo Texto: SUBCOMANDANTE; BATAILLE; DESCOBRIMENTOS
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.