São Paulo, domingo, 26 de outubro de 1997
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A ineficácia da dialética

JORGE GRESPAN
ESPECIAL PARA A FOLHA

Passados cinco anos desde a publicação de "Facticidade e Vigência" ("Faktizitãt und Geltung"), o filósofo e sociólogo Jürgen Habermas lançou recentemente mais um conjunto de estudos sobre teoria política com o livro "A Inclusão do Outro - Estudos Sobre a Teoria Política" ("Die Einbeziehung des Anderen, Studien zur politischen Teorie"), editado pela Suhrkamp.
Trata-se, em primeiro lugar, de uma contraposição às concepções do pensador norte-americano John Rawls, enfatizando a diferença entre o liberalismo e um republicanismo inspirado em Kant, para em seguida discutir o tema kantiano da constituição de um Estado cosmopolita mundial à luz das questões atuais do nacionalismo e do recrudescimento dos particularismos, inclusive os xenófobos e racistas.
Habermas oferece uma alternativa à solução dos pós-modernos para o problema da alteridade, apresentando uma perspectiva do "outro" como alguém que pode efetivamente ser integrado na sociedade moderna, ao ser reconhecido como agente de fala racional e competente. Neste sentido, o presente livro persegue o objetivo anterior de extrapolar o campo estritamente filosófico e demonstrar a relevância da Teoria do Agir Comunicativo também na fundamentação de uma teoria jurídica e política do Estado de direito.
Por outro lado, tendo em vista os graves problemas existentes hoje em dia para a integração dos imigrantes e das minorias em geral na Europa e América do Norte, ou para a constituição de sociedades realmente pluriculturais, as soluções apontadas por Habermas são, no mínimo, extremamente oportunas. Aqui Habermas também segue uma antiga e constante preocupação sua, mostrando-se atento à necessidade de mediar suas considerações teóricas por análises de situações históricas concretas. Lembremo-nos apenas de sua intervenção precisa no debate sobre a pretendida "revisão" histórica do nazismo, nos anos 80, ou, mais recentemente, sobre a tentativa de "esquecer" o período comunista e da divisão das duas Alemanhas, forjando-se uma perigosa unidade e normalidade.
Além de direcionar sua teoria para a prática, esta tarefa de pensar o presente impõe a Habermas um salutar diálogo com teóricos contemporâneos e com as questões fundamentais de sua formação frankfurtiana. É o caso do pensamento de Marx e dos marxistas, ainda mais quando os temas abordados são a reunificação alemã, a derrocada do socialismo na Europa Oriental, a globalização e as novas interdependências econômicas. Embora tenha sempre sido crítico do marxismo enquanto ideologia dos partidos comunistas, Habermas nunca poupou objeções também às teorias sociais que simplesmente desdenham do aporte fundamental de Marx para a compreensão da sociedade moderna, como é o caso do neoliberalismo, por ele chamado de "falsa solução".
Justamente sobre estes assuntos decisivos da situação mundial, bem como sobre sua relação com o marxismo, Habermas respondeu às perguntas seguintes.
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Folha - Apesar da evidente continuidade das finalidades e orientações em sua obra, é possível perceber nela modificações em temas e ênfases. No que diz respeito ao caso específico da influência da teoria marxista sobre ela, como poderiam se caracterizar os diversos momentos de sua recepção, desde a "Resenha" de 1957 até hoje?
Jürgen Habermas - Desde o começo dos anos 50, eu sempre me considerei politicamente como um social-democrata de esquerda na Alemanha Federal. É claro que isso implicou períodos diferentes: ora uma orientação mais radical, ora uma orientação menos radical. Mas, no nosso contexto de pacificação, sobretudo diante da situação repressiva e desolada da parte oriental da Alemanha, Marx e o marxismo tiveram uma influência apenas intelectual. Diferentemente dos países sul-americanos, não se produziram a partir daí vínculos organizatórios.
Aliás, já como aluno eu li "Trabalho Assalariado e Lucro" bem como outros pequenos escritos políticos de Marx e Engels, pois antes de 1947 só na livraria comunista de nossa pequena cidade havia livros e brochuras para comprar. Durante meus estudos na universidade, até meados dos anos 50, acrescentaram-se "Dialética do Esclarecimento" e "História e Consciência de Classe". Depois do doutorado, eu trabalhei sobre o conceito de ideologia e me ocupei da literatura filosófica marxista predominante nos anos 20 e 30, mas também da crítica contemporânea a Marx. Tudo isso se reflete na minha "Resenha" desta literatura em 1957.
Naquela época, atraía-me ainda o marxismo heideggeriano do primeiro Marcuse e o marxismo freudiano do Marcuse posterior. Eu tinha em vista algo como uma filosofia da história sociologicamente verificável. O que me interessava então em Kant, Hegel e Marx era sobretudo como eles haviam concebido o nexo entre teoria e prática. Só depois ocupei-me também da crítica da economia política, embora sem nunca atribuir à análise da forma-mercadoria o significado que ela sempre teve para Adorno.
Nos anos 60, a tradição do marxismo ocidental era para mim principalmente uma chave para uma teoria da modernidade social estabelecida simultaneamente pela sociologia e pela crítica da razão. Mais tarde, porém, depois de "Conhecimento e Interesse", isto é, no fim dos anos 60, abandonei os modelos de pensamento de uma filosofia materialista da história. A teleologia da história não é menos "metafísica" que a da natureza.
Folha - Depois dos acontecimentos de 1989-1991 no bloco oriental, fortaleceram-se as tendências anteriores nos países capitalistas à privatização das empresas estatais e à diminuição do papel do Estado na distribuição de renda. Neste reordenamento da relação entre Estado e sociedade, pode-se falar ainda de "compromisso" ou o Estado de Bem-estar teria sido apenas uma forma transitória? Qual o significado do neoliberalismo?
Habermas - Tanto quanto antes, eu considero o Estado social, tal como ele pôde se desenvolver sobretudo na Europa Ocidental e do Norte sob as condições do pós-guerra, para nós propícias do ponto-de-vista da economia e da política internacional, como a solução exemplar de um problema que acompanhou o capitalismo desde o início. De modo não-polêmico e abstrato pode-se formular assim o problema: como as funções alocadora e inovadora dos mercados podem ser aproveitadas, sem ter de se aceitar os custos sociais de uma tendência à desigualdade distributiva incorporada ao capitalismo? O Estado social, nos quadros nacionais destas sociedades desenvolvidas, sempre deu a isso uma resposta plausível.
Mas o impulso global e mais recente ao desenvolvimento do capitalismo limitou ainda mais o espaço de ação dos países do G-7, até então de certa forma ainda capazes de manobrar. Estes caíram na dependência de mercados globais, de modo distinto daquele há muito tempo prevalecente na América do Sul. O sistema mundial capitalista era até então internacional, ou seja, de tal forma estruturado, que os Estados nacionais formavam importantes pontos de entrelaçamento no comércio mundial.
Nesse meio tempo, porém, as economias nacionais tornaram-se dependências do mercado mundial. A urdidura transnacional cada vez mais densa solapou a capacidade de intervenção e a soberania decisória dos governos nacionais. Os mercados financeiros globais encarregam-se da "avaliação" dos locais concorrentes para o estabelecimento industrial e obrigam os governos nacionais a um ajuste desregulador, enquanto não é modificado o modelo desta concorrência internacional pela localização das indústrias.
É claro que a política do neoliberalismo é uma resposta falsa, ou seja, que desconsidera o social, para a nova situação. Nos quadros do Estado nacional, a Europa do pós-guerra e alguns outros países deram pelo menos um exemplo da possibilidade de conciliar as altas expectativas normativas do Estado de direito democrático com um capitalismo domesticado pelo Estado social. Junto a esta aliança histórica, desintegra-se não apenas uma forma de vida privilegiada, mas também um modelo para o futuro. Daí pode-se aprender que a política hoje deveria estimular a retomada do crescimento dos mercados globais, em vez de anular a si mesma. Evidentemente, isso é mais fácil de dizer do que de fazer.
Folha - Entre utopia e crítica há uma estreita relação na tradição de pensamento marxista, relação que deve ser repensada com o naufrágio do socialismo de Estado. Mas seria possível uma "crítica" sem algum fundamento utópico, ou ela exprime uma mera negatividade em si mesma? Como se poderia ainda hoje fundar uma crítica ao capitalismo?
Habermas - Hoje em dia, a escapatória de uma globalização econômica que, de fato, se você me permite esta palavra dura, conduz a uma "brasilização" do mundo, é tanto utópica quanto próxima. Utópica, porque falta vontade política e porque, mesmo que existisse vontade política, faltam por enquanto quatro ou cinco organizações com competência global que estivessem em condições de unir e impor os procedimentos e as instituições necessárias para corrigir os imperativos do mercado mundial, em vez de simplesmente executá-los, como o fazem o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional.
Hoje dificilmente alguém se arriscaria, nem mesmo numa aposta, a tecer considerações sobre possibilidades de compromisso e sistemas de negociação que tornassem padrões sociais e ambientais obrigatórios algo reivindicável por todos os participantes. Os intelectuais de esquerda não podem se limitar a análises de crise. Estas reflexões já não soam materialistas, mas eu entendo a sua observação sobre a relação estreita entre crítica e utopia da seguinte forma: no materialismo histórico sempre esteve embutido um tanto de idealismo.
Folha - Por outro lado, a crítica também se fundava num nexo de crise -ambas como expressão de uma negatividade íntima do mundo social-, e este nexo foi, de fato, um tema importante do começo de sua obra. Em "Problemas de Legitimação no Capitalismo Avançado" e em "Reconstrução do Materialismo Histórico", porém, é apresentada uma nova compreensão da crise em geral, pensada a partir de conceitos como anomia e integração. Mas não seria, com isso, perdida aquela "negatividade íntima" relacionada à crise? Ou mais genericamente: a crise é pensável sem dialética?
Habermas - Em vez de "dialeticamente", como até agora, a esquerda deveria pensar "construtivamente", mesmo que isso possa ser incomum. Nós precisamos é de modelos ou de projetos, como se fosse possível uma compensação global de interesses no quadro de uma comunidade de Estados que pensasse, digamos, uma "política interna mundial". Só em tais modelos podem se inflamar as fantasias e formar os motivos necessários para que se configure uma vontade política nas sociedades civis. Sem uma mudança de mentalidade em camadas mais amplas e sem uma pressão de dentro e de baixo, também os governos nacionais, que por boas razões sem dúvida aparecem nos cenários internacionais como egoístas racionais, não poderão ultrapassar seus próprios limites.
Crise sem dialética: de certa forma você tem razão. De qualquer modo, aquele modelo de constelações de interesse e de relações de poder, com os quais Marx ainda contava, modificou-se fundamentalmente na segunda metade do século 20, tanto nacional quanto internacionalmente. Os marginalizados e pauperizados formam hoje "subclasses" impotentes, a quem falta um potencial ameaçador. Não há um "braço forte" que possa "deter as engrenagens".
Isso é visível, por exemplo, no processo autodestrutivo das revoltas nos guetos negros, bem como na natureza autodestrutiva das ameaças com armas químicas e catástrofes ecológicas às quais Estados como a Líbia e o Iraque lançam mão. O capitalismo global torna excedente grande parte da própria população no seio das sociedades nacionais -e, internacionalmente, países inteiros. Mas, se o conceito de "exploração" não apreende mais nada, o cenário dialético também não mais demonstra que a necessidade mais externa já engendra as forças salvadoras.
Folha - Desde o começo do processo de derrocada nos países socialistas da Europa Oriental, sua obra falou de uma "revolução retrospectiva", no sentido de uma modernização política e institucional. Quando consideramos, porém, os acontecimentos dos últimos anos nestes países, isto é, as dificuldades com o desenvolvimento capitalista, com a construção de um Estado centralizado e democrático, bem como os conflitos nacionais, justifica-se ainda uma opinião otimista?
Habermas - A caracterização da reviravolta na Europa Oriental e Central como revolução "retrospectiva" foi tudo menos otimista: ela devia, em primeiro lugar, despir sua dramaticidade e atenuar as expectativas tensas da esquerda e da direita. A implosão do regime soviético em bancarrota não produziu novas idéias e, sim, apenas a confissão desanimada do fracasso de um caminho que havia exigido um sacrifício catastrófico. O que se refletiu então nestes países adequa-se a esta descrição cética: alguns países conseguiram melhor que outros alinhar-se na "concorrência pela localização das indústrias" em um nível comparativamente baixo. De qualquer modo, este processo foi repleto de privações -e ainda o é. O que vai ocorrer a seguir na Rússia, ninguém ousa hoje prognosticar.

Onde encomendar
"A Inclusão do Outro - Estudos Sobre a Teoria Política" ("Die Einbeziehung des Anderen, Studien zur politischen Teorie"), de Jürgen Habermas, editado pela Suhrkamp, pode ser encomendado Livraria Bücherstube (r. Bernardino de Campos, 215, tel. 011/240-3735, São Paulo).

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