São Paulo, domingo, 26 de outubro de 1997
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A herança judaica em Kafka

NELSON ARCHER
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Franz Kafka (1883-1924) nasceu em Praga, cidade que, durante 35 anos da vida do escritor, pertencia à monarquia austro-húngara. Kafka só se tornou um escritor de nacionalidade tcheca nos cinco ou seis últimos anos de sua vida.
Seus livros foram redigidos em alemão, mas um alemão não muito fácil de situar no tempo e no espaço, e cujo estilo, como lembra seu tradutor brasileiro, Modesto Carone, pode ser chamado de "cartorial".
Há, ao que parece, uma única coisa segura: Kafka era judeu. Mas o que quer isso dizer exatamente? Só os judeus ortodoxos e os anti-semitas extremos têm uma resposta clara a essa pergunta, e o escritor não pertencia, é óbvio, a nenhum desses grupos.
No entanto, como diversas vertentes críticas vêm reconhecendo, a condição judaica está no centro da sua obra descentrada e excêntrica sob a forma adequada de paradoxo irresolúvel.
Esse pode ser definido como o tema central em torno do qual gravitaram as exposições e subsequente discussão no evento realizado na Folha no último dia 6 que reuniu Gershom Shaked, principal crítico literário israelense e professor da Universidade Hebraica de Jerusalém, Jacó Ginsburg, fundador da Editora Perspectiva e professor aposentado da USP, e o poeta, ensaísta e tradutor Haroldo de Campos.
Shaked discorreu sobre a centralidade de Kafka, sublinhada pela transformação de seu nome em adjetivo de uso corrente (situações "kafkianas", por exemplo), uma centralidade conquistada, entre outras razões, pelo caráter quase profético de uma ficção que teria antevisto o Holocausto e o Gulag. Além disso, ele apresentou paralelos interessantes dessa obra com a pintura e com o cinema (principalmente Chaplin).
Ginsburg mostrou que, além da influência não facilmente demonstrável da condição étnica, o escritor valera-se também de recursos literários característicos da tradição judaica, reabilitando ou traduzindo para seu contexto o modo de se exprimir por parábolas que, por intermédio dos mestres hassídicos dos séculos 18 e 19, remonta ao Antigo Testamento. Haroldo de Campos, por sua vez, falou sobre as raízes bíblicas do universo kafkiano, patentes no "Livro de Jó" e nos "Eclesiastes".
Durante a discussão, os tópicos foram elaborados mais complexamente, embora Shaked parecesse não ter compreendido direito a proposta de Ginsburg que, no entanto, ajudara claramente a compreender o escritor. Talvez o momento mais interessante do debate tenha sido desencadeado por um membro da platéia, que manifestou sua surpresa ao ver Kafka tratado sob o prisma de seu judaísmo.
Esta surpresa, mais do que indício de qualquer grande divergência conceitual, revela a diferença de abordagens entre, por um lado, europeus e norte-americanos, para os quais a assim chamada "questão judaica" é às vezes uma obsessão, e, do outro, brasileiros, em cujo país tal questão está (abençoadamente?) quase ausente. (Nelson Ascher)

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