São Paulo, domingo, 26 de outubro de 1997
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Entre a ciência e a fé

STEPHEN JAY GOULD
DO "THE NEW YORK TIMES BOOK REVIEW"

O deserto do sudoeste dos Estados Unidos é, para mim, o terreno mais inospitamente belo do mundo. Muitas culturas humanas passaram por ele, o disputaram e se estabeleceram nessa magnífica paisagem. Mas a maioria repousou com leveza sobre ela, com algumas exceções, das quais as mais estridentes são os gramados verdes das mansões, pois nenhuma vegetação poderia ser menos apropriada à paisagem ou mais perdulária com a preciosa água do deserto.
Vistas à distância, as cidades hopi no alto das mesas se assemelham a camadas horizontais de rochas sedimentárias. As escadas que saem das kivas (câmaras subterrâneas cerimoniais das aldeias dos índios pueblo) são as únicas evidências claras de construção humana, nos estratos superiores. A ciência também penetrou nesta região de diversidade máxima, com a construção de instituições de objetivos tão diversos quanto o Laboratório Nacional de Los Alamos, para travar a guerra com meios superiores, e o Instituto Santa Fé, para a melhor compreensão da complexidade.
George Johnson, até pouco tempo atrás um dos editores do "The New York Times", viveu em várias subculturas científicas da região e estudou as alternativas locais primárias de origem indígena americana, hispânica e anglo. Ele utiliza essa diversidade máxima para formular a mais importante de todas as perguntas relativas ao poder e ao impacto social da ciência: "Os padrões encontrados pelas subculturas científicas de Santa Fé e Los Alamos merecem, de alguma maneira, ser qualificados de verdade universal, ou seriam vistos por um hipotético visitante vindo de uma galáxia distante como sendo tão culturalmente determinados quanto aqueles intuídos pelos tewa e os Penitentes?"
Como acontece com todas as dicotomias supersimplificadas -como Johnson sabe e reconhece-, ambos os lados contribuem com peças essenciais para formar um quebra-cabeças total que tem muito mais dimensões. Segundo o mais antigo (mas nem por isso menos válido) dos argumentos convencionais, a ciência deve ocupar uma posição privilegiada em sua área de competência declarada -a descrição e explicação da realidade empírica, mas não a exploração da verdade moral ou estética- porque os frutos tecnológicos de sua aplicação tão evidentemente funcionam, sejam quais forem suas consequências para nossas vidas. Mas toda a ciência, necessariamente feita por seres humanos com esperanças psicológicas e expectativas culturais, deve ter suas raízes fincadas no âmbito social e deve, portanto, refletir os usos e costumes mutantes dos diferentes momentos históricos.
Esses vieses sociais são estudados e compreendidos pelos historiadores da ciência há muito. Johnson centra este livro excelente sobre outra espécie de viés, menos frequentemente comentado pelos críticos, mas que é trazido à tona de maneira contundente pelas ciências examinadas mais de perto neste livro: aquelas que operam nos tamanhos e nas escalas mais distantes de nossa experiência e nossas percepções cotidianas, incluindo a cosmologia, a física de partículas e a teoria quântica.
Ordem e significado
O cérebro humano é um instrumento projetado evolutivamente para lidar com nossas vivências e nossos perigos mais imediatos. Ele mede o tempo em termos que vão de segundos a anos, os tamanhos, de mosquitos a elefantes, as velocidades, desde a da lagarta-mede-palmos à do guepardo. Por que razão deveríamos entender os prótons e as galáxias, sem falar no infinito e na eternidade?
No entanto, nos sentimos impelidos a extrair ordem e significado do misto de complexidade e de caráter aleatório que a natureza nos apresenta. Sempre construímos complexas teorias de ordem, e no entanto sabemos que os cientistas mais inteligentes de séculos passados aceitaram conceitos hoje identificados como sendo ridiculamente inadequados, incluindo os de um Universo pequeno centrado na Terra e o de uma história da vida criada que se estendia por meros 6.000 anos no passado. Com certeza, nossas teorias atuais devem estar mais próximas da adequação empírica. Mas é bem possível que ainda nos encontremos a anos-luz da precisão.
Agnosticismo
Temos dificuldade especial quando se trata de um conjunto de conceitos inter-relacionados que são vitais para a compreensão dos sistemas complexos: a aleatoridade (pois nossas explicações são histórias, e preferimos contar histórias sobre causas e intenções convencionais); a contingência (pois ansiamos retratar nosso complexo presente histórico como consequência necessária de condições anteriores, e não como resultado imprevisível, embora sensato, que jamais voltaria a ocorrer se pudéssemos repassar a fita da vida desde um ponto de partida idêntico); e a hierarquia (pois sentimos prazer diante da simplicidade de aplicar um conjunto de princípios causais a todos os níveis de tamanho e tempo, e temos uma dificuldade mental imensa em compreender, como diz Johnson, "a idéia de que regras, em um nível, possam dar lugar a outras totalmente diferentes em outro nível").
Johnson mostra admirável agnosticismo e abertura de mente ao examinar, capítulo por capítulo, uma gama de fronteiras científicas mais distantes da física e química simples e deterministas dos objetos que operam em nossas escalas e nossos tempos. De vez em quando, porém, revela a presença de um viés convencional, afirmando, por exemplo (talvez não intencionalmente) os obstáculos mentais que nos impedem de reestruturar a natureza.
Ele se mostra especialmente relutante em enxergar a história da vida como não sendo predeterminada em seus contornos mais amplos, e não previsivelmente impelida a uma complexidade maior (embora ofereça uma explicação lúcida e um resumo justo de minhas próprias perspectivas contraditórias). E, honestamente, situa as origens dessa relutância em nossas tradições sociais e preferências psicológicas. Johnson escreve: "A maioria de nós sente a certeza de que a complexidade do mundo biológico aumenta inexoravelmente". Mas por que o senhor sente isso, sr. Johnson, num mundo dominado por bactérias desde que a vida começou?
Eu compartilho o bem-vindo ceticismo de Johnson ao tratar das ciências de escalas, tempos e velocidades pouco familiares, em que conclusões aparentemente "firmes" se baseiam em longas sequências de pressupostos que interagem entre si. Nada é capaz de me convencer a lutar e morrer por uma cosmologia que situa 90% da matéria cósmica na categoria do "inobservável atualmente".
Os avanços feitos na área da instrumentação incentivaram o avanço da ciência, possibilitando nosso acesso a escalas anteriormente impossíveis de se conhecer. Mas, seja qual for sua amplitude enquanto instrumento de compreensão, a mente humana atua como limite e porteiro último. Em seu "Ensaio sobre o Homem", Alexander Pope questionou a utilidade da percepção melhor das escalas invisíveis, temendo que possamos perder a "visão" filosófica de coisas maiores. Mas até que ponto podemos compreender os céus sem tentarmos enxergar todas as escalas da natureza? E como nosso cérebro gloriosamente restrito sofre por sua tendência evolutiva a enxergar os problemas em um pequeno canto da realidade?

Tradução de Clara Allain.

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