São Paulo, domingo, 26 de outubro de 1997
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Os padecimentos de um torcedor

ANTONIO NEGRI
ESPECIAL PARA A FOLHA

Neste período muitas coisas andam arrevesadas para mim. Mas sobretudo uma: o futebol. Sou torcedor do Milan. Estou vivendo, no entanto, num cárcere romano, cuja população divide-se entre torcedores do Lazio e do Roma (os dois clubes da cidade eterna). Entre si, dividem-se, escarniçadamente dialéticos, mas quando estão diante de um milanista, unem-se, escarniçadamente hostis. Como se isso não bastasse, o meu time só faz é perder. Apesar dos nomes famosos, o Milan é a sombra do timão que já foi.
Meu mal-estar está no ápice: como sobreviver no cárcere, numa situação destas? Desde que o campeonato começou, meus colegas criminosos, "lazistas" ou "romanistas" que sejam, olham-me com comiseração, quando não com desprezo. Os meus títulos acadêmicos, minha fama na mídia, minha bonomia de cavalheiro, que de início me valeram muito respeito, como por encanto dissiparam-se na consideração de meus companheiros de desgraça.
Às segundas-feiras, depois da rotineira derrota dominical de meu time, não me chamam mais "professor", mas Toni, familiar e ironicamente Toni. Não poderia haver maior humilhação, não por simplificarem tão rudemente uma relação que, de qualquer maneira, é dura, mas por eu sentir sua postura como escárnio. Nesta situação, por vezes, até penso em mudar o objeto de minha torcida. "Paris bem que vale uma missa!" Aliás, haveria boas razões para um "arrependimento": depois de ter sido o time do antifascismo milanês, e, portanto, de esquerda, o Milan foi comprado por Berlusconi, o rás da direita neoliberal italiana. Poderia, portanto, acobertar com motivos políticos a minha oportuna conversão para outra torcida. A do Roma poderia atrair-me: o Roma é o time do proletariado romano, enquanto o Lazio, seu oponente da cidade, representa antes a burguesia clerical e fascista e a aristocracia populista da província. Mas não posso. O fantasma de Giordano Bruno, milanista e europeu, queimado numa fogueira romana, aparece para me admoestar! "Non possumus."
Desde criança meu pai vestia-me nas cores (antifascistas) do Milan e, mais tarde, por volta de 1968 e depois daquela data (que fique entre nós, não vão repetir isso aos juízes italianos), estive entre os inspiradores das "brigadas rubro-negras", as tropas de assalto da torcida milanista. Os meus amigos, eu os escolhi entre os milanistas, e entre as tantas vicissitudes de minha vida, felizes ou desafortunadas que fossem, só não fui traído pelos milanistas.
Minha vida é milanista: a do meu filho também, e eu o perderia se o traísse, e o meu pai se viraria no caixão. De modo que resisto estoicamente às desventuras do meu time. Assim, quando urros selvagens se levantam dos pavilhões do presídio (mais intensos do que se uma revolta estivesse em curso) para comemorar um ou mais gols que o Roma ou o Lazio impingiram ao meu time, sofro calado.
Uma grande e melancólica dignidade, tal que só Plutarco poderia narrá-la, cresce no meu peito. Claro, em outros momentos eu sinto uma certa tentação de aliar-me aos napolitanos e sicilianos (poucos neste cárcere, mas dotados de uma firme tradição criminosa, da qual, individualmente, deram prova) para construir uma musculosa aliança anti-romana. Como os príncipes milaneses e napolitanos faziam, no Renascimento, para se oporem aos desejos expansionistas do Papa. Uma aliança vingativa que, a cada derrota do Roma ou do Lazio, saiba retribuir as ofensas sofridas. Infelizmente (tenho de reconhecer, realisticamente) não existem relações de força que possibilitem a eficácia desta eventual aliança, mais ou menos como já reconheciam Guicciardini e Maquiavel. Em suma, a vida que estou levando é insuportável. E vai ficar mais ainda: em vista do jubileu, e já na previsão das Olimpíadas (esperança felizmente não realizada), os grandes tributos estatais que convergem sobre Roma fortalecerão estes times e as instalações que utilizam e os viveiros de onde conseguem seus jogadores. "No future." O meu Milan terá de sofrer esta supremacia por muitos anos ainda? Quando o pesadelo acossa, minha vida de prisioneiro fica reduzida ao limite do desespero.
Afinal por que, pergunto-me, fui me entregar de volta ao cárcere logo num período em que o Milan está perdendo? Como podia imaginar sair vitorioso numa batalha política, na ausência do suporte de um poderoso time de futebol? Já está bastante claro que o povo e os juízes romanos querem punir a minha "fé" futebolística!
Procuro consolar-me: os acontecimentos do futebol são aleatórios -repito para mim mesmo-, o esporte é o reino do efêmero e do imprevisível, os deuses são frívolos em suas preferências e amanhã poderiam voltar a abençoar o Milan. Mas o meu gênio me aconselha a não ceder à ilusão -pode levá-lo para o alto, mas quando cair vai ser um desastre. O que eu perderia? No desastre do meu Milan eu já estou mesmo. Penso em suicídio. Não, não, a vida, de qualquer forma, é sagrada, pelo menos a minha. Procuremos então administrar a passagem pelo deserto.
Subterfúgios, caminhos de fuga interiores, nicodemismo. Por exemplo: mesmo que permanecendo intimamente milanista, não dê nas vistas, fale sobre isso com um distanciamento cético, lembre com ironia alguma derrota do passado (já tão distante a ponto de não ferir mais): por que não? Já tentei, sem o menor sucesso. Eles enxergam você, em todo o caso, como um infiel, um réprobo, um inimigo. A astúcia não compensa. Tento o último maquiavelismo: abstenho-me de qualquer discussão, finjo que o futebol não existe como instituição totalitária da sociedade e, em vez de amaldiçoar este "ópio dos povos", esnobo sua atulhante presença e suas vulgares paixões.
Aos domingos, enquanto a massa dos prisioneiros fica grudada, entre imprecações e entusiasmos, aos radinhos que transmitem "o futebol minuto a minuto", eu ando, solitário, na gaiola de cimento do "passeio" (sei que "romanistas" e "lazistas" ficam, de todo modo, me espiando). Assovio com uma pontinha de arrogância. Deus me salve! De vez em quando alguma chacota chega por detrás das grades das janelas que dão para o "passeio". Chacotas desarmantes. Nem sequer a mais sublime abstração do espírito me salva de um escárnio que não poderia ser mais prosaico. Alma minha, não estremeça. E no entanto estremece, mas de raiva. Não aguento mais este domínio barbaresco. Do futebol a gente não se livra. Então, sabem o que vou fazer? Vou pedir transferência para o cárcere de Milão. Ali, pelo menos, nós, os milanistas, seremos a maioria.
Estas são as minhas prisões, senhores leitores, no triunfo do pós-moderno. Como podem observar, procurei compreendê-las "gramscianamente" e agir em conformidade. Vou me subtrair à "hegemonia" liquidando toda e qualquer aquiescência "passiva" com esta: buscarei uma "revolução ativa" que me leve a Milão, onde a "ditadura democrática" dos milanistas poderá se exercer. Acredito firmemente nisto. Só que, às vezes, num ímpeto de revolta extremista, ouso pensar que o próprio futebol deveria ser eliminado porque é, em todo lugar, uma prisão; e que as prisões deveriam ser destruídas porque, em todo o lugar, estão invadidas pelo futebol. Mas não digam isso aos meus juízes: quem perdoaria este crime contra "o estado presente das coisas"?

Tradução de Roberta Barni.

Texto Anterior: Coluna Joyce Pascowitch
Próximo Texto: Stravinski critica Beethoven
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.