São Paulo, domingo, 26 de outubro de 1997
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Stravinski critica Beethoven

ROBERT CRAFT

Roberto Craft - O senhor comunicou algumas de suas opiniões sobre as sonatas e quartetos de Beethoven, mas não sobre suas sinfonias.
Igor Stravinski - É que não tenho nenhum ponto de vista sobre uma música tão popular. E, apesar de a crítica negativa não me interessar, a positiva é muito difícil -no sentido do argumento do professor Popper, segundo o qual se pode provar a falsidade, mas não a verdade da hipótese científica. Finalmente, porque as sinfonias são um discurso público, ao passo que as sonatas e quartetos -em especial os últimos exemplos- constituem um discurso privado ou pelo menos mais íntimo, que me atrai mais.
Abro exceção para o "Adagio" da "Nona". Digo-o, porque ultimamente ele me tem comovido muito, confissão que parece me tornar culpado da Falácia Afetiva. Mas, de fato, eu sempre procurei distinguir o objeto musical da emoção por ele induzida, em parte com base na constatação de que o objeto é ativo e a emoção reativa, portanto uma tradução. Não quer dizer que acredite em separações desse tipo, nem nessas leucotomias da moda entre "sensibilidade" e "intelecto", os chamados cérebros "novos" e "velhos". Saliento apenas que os seus sentimentos e os meus são muito menos importantes que a arte de Beethoven. Aliás, para começar, Beethoven não transmitia suas "emoções", mas suas idéias musicais, que não "traduzem" necessariamente as emoções que pudesse estar sentindo no momento, embora as possa "transferir". Em outras palavras, minha posição é diametralmente oposta à de Diderot, que afirmava que uma pintura "comovia-o", "partia-lhe o coração", fazia-o "tremer" e "chorar", mas só "deleitava seus olhos mais tarde". Em suma, a arte ficava de fora.
Craft - Que é uma idéia? De que tem consciência em primeiro lugar?
Stravinski - Intervalos, combinações intervalares. O ritmo, sendo desenho (e estrutura), tende, se não a vir depois, pelo menos a sofrer mudança, coisa que não acontece com as idéias intervalares. No meu próprio caso, ambos costumam ocorrer juntos. Um dos atributos indispensáveis da imaginação do compositor, acrescentaria eu, é a capacidade de reconhecer o potencial de sua idéia; de perceber imediatamente, por exemplo, se ela é muito complexa e exige destrinçamento, ou muito dispersa e exige concentração. Talvez, sem que o compositor o perceba, a força do hábito desempenhe importante papel nisso.
Nunca vi os esboços do primeiro movimento da "Quinta Sinfonia" de Beethoven, mas não posso conceber que intervalo e ritmo tenham sido concebidos em separado; na composição final, decerto parecem perfeitamente congruentes (ou, como sustentam os teólogos da "Dupla Natureza", "sem separação nem confusão"). Ainda assim, o ritmo é o aspecto mais notável desse movimento. Em primeiro lugar, as durações irregulares ficam confinadas à música inaudível, os silêncios variáveis em comprimento. Em segundo, a música audível articula-se em apenas três, com seus múltiplos, unidades rítmicas: meias, quartas e oitavas sem iambos e sem tercinas!). E em terceiro, o que constitui a delimitação mais surpreendente, o movimento não é sincopado.
Além disso, Beethoven obedece a essas condições de modo tão rigoroso que até parece impô-las como um "jogo". No entanto, longe de ter cerceada sua imaginação, esta se mostra tão pródiga como sempre, e até mais radical. No diálogo dos sopros e cordas a partir de m. 196, por exemplo, 32 meias notas se sucedem sem nenhum realce rítmico, embora outros tipos estejam presentes (o movimento melódico-harmônico, a mudança de peso da instrumentação, a alteração do comprimento das frases). Ora, a passagem não só não é ritmicamente monótona como apresenta a mesma tensão de "A Sagração da Primavera".
O segundo movimento, em comparação, insiste tão pesadamente nas batidas, no mau sentido -o que era inevitável-, que a tensão rítmica quase não se percebe. Além disso, Beethoven nem sempre resiste à tentação de exagerar a extensão (cf. a música das madeiras de mm. 129 a 143). Após o primeiro movimento, a sinfonia se torna um pouco difícil de cantar.
Craft - De quais sinfonias o senhor gosta?
Stravinski - Da "Segunda", da "Quarta" e da "Oitava". Mas não da "Sexta": a música é sempre "bonita", sem dúvida, porém nada mais que isso. Claro, a regularidade tonal e métrica casa-se bem com a simplicidade do "cenário" -mas o "cenário" importa? O "regato", embora danubiano na extensão, carece de incidentes (cachoeiras, redemoinhos, corredeiras) e, para mim, poucos episódios na obra do grande compositor são menos bem-vindos que o retorno do segundo tema em m. 113. No entanto, estruturas temáticas da "Pastoral" são encontradas também em sinfonias anteriores e posteriores. No "Adagio" da "Quarta" (m. 34), por exemplo; no "Andante" da "Quinta" (o tema em si, porém mais notoriamente na variação da 32ª nota); e, o que surpreende mais, no clímax final do "Adagio" da "Nona" (m. 147).
O primeiro movimento da "Segunda Sinfonia" é o mais persistentemente brilhante de todas as nove, além de estabelecer muitos dos traços do estilo sinfônico de Beethoven: as batidas, as pausas súbitas, os torneios harmônicos repentinos, as amplificações e cortes, a suspensão -ou escamoteação- dos volumes esperados. Também os outros movimentos são modelos para sinfonias posteriores, o "Larghetto" para o "Andante" da "Quinta" (a partir de m. 230, especialmente), o "Scherzo" e o final das partes correspondentes da "Quarta". Mas, afora o Haydn da "Primeira", as sinfonias raramente perturbam os fantasmas dos predecessores; ao mesmo tempo, uma dessas raridades é o episódio "A" do final, que poderia ter ocorrido numa das aberturas operísticas de Mozart.
Craft - E a "Eroica"?
Stravinski - O primeiro movimento é sempre tão desfigurado por maestros pretensiosos que quase nunca o compreendo. O mesmo pode ser dito da "Marcha Fúnebre", que o regente quer exalçar, mas acaba sepultando. Finalmente, o afrouxamento do último movimento -o que não é culpa do maestro- fica ainda pior por seguir-se ao mais maravilhoso "Scherzo" que Beethoven jamais escreveu.
A "Quarta" (junto com a "Oitava") é a mais frouxamente sustentada das sinfonias. No entanto, via de regra, o primeiro "tempo" decorre de modo tão lento que se faz necessário um "acelerando" para acomodar os acordes no final da "Introdução". Obviamente, uma medida da "Introdução" deve corresponder a duas medidas do "Allegro" (assim como as semicolcheias do final da "Introdução" da "Quinta Sinfonia" devem igualar as semicolcheias do "Allegro", isto é, devem ser tocadas como semifusas). O fato de Weber não ter compreendido essa sinfonia é tanto mais estranho quanto, incidentalmente, o "cantabile" de clarinete no segundo movimento lembra muito a sua música.
Craft - E quanto à "Nona" como um todo?
Stravinski - O "Allegro" contém muitas coisas novas (por exemplo, o baixo wagneriano em m. 513), mas o tema principal se encerra com um solavanco, e o ponto de "staccato" é insistente (cf. as oito medidas "fortissimo" imediatamente anteriores ao "da capo"). O "Scherzo", posto que a melhor parte do programa de Huntley-Brinkley, revela-se -como o "Scherzo" da "Sétima"- longo demais. Não bastasse isso, é sempre tocado de maneira errada. As medidas duplas e triplas deveriam ser aproximadamente iguais. Se isso não fica claro no "stringendo" inicial, é inequívoco no "Presto", mais confiável que o metrônomo e que dificilmente se pode tomar por um erro de impressão. Em suma, a relação é quase a mesma que entre as medidas duplas e tripla do "Scherzo" da "Eroica".
A respeito do final intocável também não se diz sempre a verdade, embora o próprio compositor pareça ter reconhecido o problema (segundo Sonnleithner e outros). A verdade, em parte, é que alguns trechos da música são muito banais -uma passagem do último "Prestissimo" e a primeira versão do tema com toda a orquestra, que não passa de música alemã de banda no estilo "Kaisermarsch". A banalidade pesa muito, talvez de modo desproporcional. Outra parte da verdade é que as vozes e a orquestra não combinam. Os desequilíbrios são sintomáticos. Não ouço essa música ao vivo desde 1958, quando regi uma peça minha juntamente com ela: mas nunca ouvi uma versão equilibrada. As notas "erradas" soam mal no primeiro acorde "apocalíptico", a despeito dos engenheiros de som, que com toda a sua parafernália não podem resgatar a tensão no "Seid umschlangen, Millionen!", pois o fracasso é musical e não eletrônico. Todavia o engano maior reside na "mensagem", portanto no "meio", se me perdoar a expressão. A mensagem das vozes constitui uma finitude que diminui grandemente a mensagem da música. E a primeira irrupção vocal é uma intrusão chocante: o cantor dificilmente ficaria mais deslocado nos "Pagliacci".
Craft - E com relação ao "Adagio"?
Stravinski - Não disponho de meios para estabelecer a "correção", como já disse. Nem posso fazer uma afirmação precisa como o sobrinho do surdo. "Como o senhor fez valer o 'Andante', tio!", observou ele em seu diário, com mais penetração do que supunha -pois a forma do "Adagio" e suas partes correspondentes, além da cadência tríplice com suas suspensões compassadas, iriam tornar-se propriedades (às vezes cênicas) da "velha" (significando "nova") Viena. O chamado estilo vienense, parte da linguagem comum de compositores tão diferentes quanto Brahms, Strauss, Wolf e Mahler, foi não apenas entrevisto como inventado naquele movimento. Mahler, sobretudo; sua evocação na serenata central é verdadeiramente espantosa -exceto pelo fato de Beethoven ser sempre o mais arguto mensageiro do futuro, pelo menos do futuro que me interessa. Mas basta. Ouça a música. O movimento todo é uma melodia sublimemente sustentada pelo compositor, que, mais que qualquer outro, "sublinhou e exaltou o Homem ao máximo".

Tradução de Gilson César Cardoso de Souza.

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