São Paulo, domingo, 26 de outubro de 1997
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Boulez e Cage no lance de dados

AUGUSTO DE CAMPOS
ESPECIAL PARA A FOLHA

Editada primeiro na Suíça, em francês e inglês (1990), a seguir pela editora parisiense Christien Bourgeois (1991), e mais recentemente em inglês pela Cambridge University Press (duas edições, 1993 e 1994), a "Correspondência Boulez-Cage" constitui um documento importantíssimo para a compreensão dos desenvolvimentos da música contemporânea. O epistolário coligido compreende o período entre maio de 1949 e agosto de 1954 (com o acréscimo de uma carta posterior de Boulez, de 1962, e vários outros documentos, inclusive uma conferência inédita, de 1949, do compositor francês sobre a música de Cage para piano preparado).
A organização e a introdução, excelentes, ficaram a cargo de Jean-Jacques Nattiez, o mesmo organizador do livro "Points de Repère", que, juntamente com "Relévés d'Apprentis" (Apontamentos de Aprendiz), publicado entre nós pela Editora Perspectiva, compõe o conjunto de estudos musicais mais abrangente de Boulez. Tradução cuidadosamente editada e anotada, por Robert Samuel, dos textos em francês, inclusive os de Cage, quando nesse idioma, preservados os de Boulez, quando em inglês (um engraçado inglês aproximativo).
Em alguns poucos momentos extremamente técnica, mas cheia de lances afetivos e espirituosos e de preciosas observações musicais e literárias, a correspondência confirma e esclarece a intensa amizade e a mútua admiração que houve entre os dois compositores até a hora em que os separou a divergência estética: Boulez caminhando para o panserialismo ou serialização total dos parâmetros sonoros e para o aleatório controlado; Cage para a aventura do acaso e da indeterminação.
Tanto a polarização como o dissídio não são novidade no âmbito da discussão musical. Novas são as luzes que a correspondência lança sobre a questão, que não parece resolver-se numa simples equação maniqueísta. A ponto de o organizador arriscar o paradoxo de uma recíproca influência com troca de sinais: "Em certo sentido, Boulez deveria o serialismo total a Cage, e Cage o conceito de acaso a Boulez". Aquele declarou, certa vez, a Henry Cowell, que Boulez o influenciara com o seu conceito de mobilidade. Por outro lado, este sempre proclamou a sua admiração pelas descobertas de Cage, seu uso de agregados sonoros e sua organização da estrutura rítmica. Além disso, Boulez reconheceria, mais tarde, que a automaticidade do serialismo total era capaz de induzir a uma certa anarquia, que, como observa Nattiez, poderia fazer a indeterminação entrar pela porta dos fundos do controle total.
As cartas relativizam, também, os juízos caracterológicos do livro de Joan Peyser, "Boulez, Composer, Conductor, Enigma" (Nova York/Londres, Schirmer, 1976), severamente criticado por Glenn Gould por suas tentativas de bisbilhotice sobre a vida íntima do músico francês e pelas suas pretensões de "retrato psicobiográfico". Apesar de oferecer um quadro vívido das idéias e atividades de Boulez e de considerá-lo um gênio musical, Peyser tende a amesquinhar as divergências artísticas em termos de conflitos do ego, revolta filial e culpa fraterna, e a caracterizar Boulez como uma personalidade fechada, indiferente aos sentimentos e às amizades. Não é o que mostram as suas cartas. Verifica-se, também, que, ao contrário do que afirma Peyser, Boulez não deixou de escrever a Cage depois do seu reencontro com ele, em Nova York, em 1952, embora se acentuem as divergências em torno do uso do acaso, enunciadas por ele com firmeza, mas com discrição, em suas cartas.
Cage irritou-se com o artigo "Alea" (1957), em que Boulez toma posição diante dos problemas da interferência do acaso na composição (admite o acaso controlado, mas rejeita o que qualifica de "acaso por inadvertência", referindo-se indiretamente às práticas preconizadas pelo músico americano, embora sem nomeá-lo). Segundo Peyser, Cage teria afirmado: "Depois de ter muitas vezes proclamado que não se poderia fazer o que eu queria, Boulez descobriu o 'Livro' de Mallarmé. Era operação de acaso até o mínimo detalhe. Comigo, o princípio tinha de ser rejeitado; com Mallarmé, tornou-se subitamente aceitável para ele. Agora, Boulez promove o acaso, só que a sua espécie de acaso...".
Na verdade, porém, lido à distância, o texto de Boulez, densa e sibilinamente redigido, questiona o que é questionável nas práticas de música indeterminada, e o faz em nível elevado, embora com a característica veemência do articulista, não descendo jamais ao ataque pessoal. O que esperava Cage? Adesão total ao seu Acaso? O mais curioso é que um ouvinte comum não detectará diferenças essenciais de linguagem entre os lances de dados sonoros das "Sonatas 2 e 3 para Piano", de Boulez, ou os da "Music of Changes", de Cage. São numerosos os pontos em comum entre os compositores, à época -ambos cultivavam a impessoalidade da obra, ambos se utilizavam de tabelas e "quadrados mágicos" para organizarem suas obras, ambos queriam se livrar de toda "memória" musical, ambos, a partir de Webern, pareciam chegar a uma espécie de móbile de explosões sonoras rodeadas de silêncios. Mas eles tomariam rumos diferentes, e é difícil imaginar que alguém com uma personalidade musical tão definida como Boulez devesse sucumbir ao ímpeto progressivamente anárquico das idéias de Cage apenas em nome de uma boa amizade. Eles, de fato, se interinfluenciaram. Mas o que era liberdade para Cage, parecia, em seu limite, facilidade a Boulez, e o que era rigor para este afigurava-se limitado para aquele. Nada a fazer.
Boulez afirma que, quando a edição de "Le Livre de Mallarmé", organizada por Jacques Scherer, apareceu (março de 1957,) ele já tinha alcançado o princípio de composição aleatória de sua "Terceira Sonata" (1956-57). Os esboços e notas do texto permutatório de Mallarmé teriam constituído para ele "mais do que uma confirmação, uma prova final da urgente necessidade de renovação poética, estética e formal". De qualquer forma, tenha o livro póstumo do poeta francês precipitado as concepções de música aleatória de Boulez ou simplesmente intercorrido na sua elaboração, o fato é que, desde muito, Mallarmé ocupava sua mente, e não qualquer Mallarmé, mas precisamente o criador de "Un Coup de Dés", poema que, por sua mobilidade plástica e sua tematização do Acaso, pode ser visto como um prefácio ao projetado "livro". Já em 1963, Haroldo de Campos abordara o tema, à luz da edição de "Le Livre" e suas conotações com a música de Boulez e Cage, em "A Arte no Horizonte do Provável", artigo depois incluído na coletânea de ensaios do mesmo nome (Perspectiva, 1969).
As cartas sinalizam em vários momentos o envolvimento específico de Boulez com "Un Coup de Dés" (então fora das cogitações da "intelligentsia" literária francesa). O fato ficou obscurecido pela circunstância de o compositor ter afinal desistido do projeto, acalentado, ao que parece, por vários anos, de musicar o texto mallarmeano (tratar-se-ia, segundo esclarecem as notas à correspondência, de uma obra para coro de grande orquestra).
Boulez reiterará mais tarde que o que o levou a escrever a "Sonata nº 3" foram mais as experiências literárias do que as considerações musicais. Cage, de seu lado, haveria de revelar um prodigioso talento de escritor e de poeta na série de livros que publicaria a partir de "Silence". Musicou textos de Cummings e Joyce. Fundiu Pound e Stein na prosa poética dos seus "Diários". E não haveria uma alusão às mallarmaicas "subdivisões prismáticas da Idéia" nas estruturas numéricas de ritmo, que ele mesmo chamou de "prismáticas"? A correspondência evidencia esse vórtice de interesses interdisciplinares. É algo que merece atenção em nosso próprio contexto, e por mais de um motivo.
O Brasil é o pano de fundo de algumas cartas relevantes de Boulez, que, muito jovem, veio por duas vezes ao Rio e a São Paulo, em 1950 e 1954, como diretor musical da companhia teatral de Jean-Louis Barrault e Madeleine Renaud. Tanto ele como Cage se divertem com o fato de Boulez ter de reger a música de Milhaud, que os dois abominavam. Este, como se sabe, estivera no Brasil, com Paul Claudel, entre 1917 e 1918, e voltara impregnado de temas folclóricos brasileiros em suas composições "L'Homme et Son Désir", "Le Boeuf sur le Toit", "Saudades do Brasil"). Cage (carta de 17 de janeiro de 1950): "Quando você estiver no Brasil, ponha algodão nos ouvidos para não ficar milhaudizado". Boulez (abril de 1950): "Tentarei não voltar como Milhaud!". Boulez (maio de 1950): "Meu caro John. Aqui estou já 'Saudading in Brazil'±". Boulez (julho de 1954): "Estou milhaudizando com todas as minhas forças (por causa do Cristóvão Colombo, que está me fazendo descobrir a América tanto quanto eu quiser)". Entre parênteses: Milhaud escrevera a música para a peça "Christophe Colomb", de Claudel, que a Companhia Renaud-Barrault apresentava. Boulez ainda (julho/agosto de 1954): "O giro termina em cerca de dez dias. Ufa! depois retornamos -mas certamente não terminamos com Cristóvão Colombo! Descobrir a América não dá nenhuma folga".
No futuro, Boulez seria mais indulgente com Milhaud, lembrando, numa entrevista a Claude Samuel, em 1984, a independência da percussão nas suas "Coéforas" (1915), "onde -ele o sublinha- encontramos um movimento para coro e percussões que se serve de percussionistas, mas também confia aos componentes do coro uma série de assobios. Não é um fato musical muito importante, mas assinala uma data na história da percussão". Na mesma linha, "L'Homme et Son Désir", com sua inusitada variedade percussiva, atravessada de vocalises, num conflituoso tecido sonoro politonal e polimétrico, bem poderia contar mais alguns pontos para o autor das "Coéforas", que, curiosamente, foi também visitado pelos manes mallarmaicos no Brasil. Pelo menos, o seu catálogo de obras registra: "Chansons Bas (Mallarmé) Suivies d'un Verso Carioca" e "Deux Petits Airs (I - indomptablement A Du; II - Quelconque une Solitude)", composições datadas de 1917, Rio de Janeiro, o que quer que valham.
As primeiras referências presumíveis ao "Lance de Dados" ocorrem numa carta de junho de 1950, endereçada por Boulez a Cage, a partir do Lord Hotel (av. São João, 1.173, São Paulo): "Para o Mallarmé, eu trouxe todas as obras corais de Bach. Que vitalidade! É uma intimidação incrível". Mais adiante, após uma referência ao Nick Bar, de São Paulo: "Estou principalmente orquestrando velhas coisas. Uma tarefa que, afinal, requer menos concentração que uma composição propriamente dita. Contudo, não dei um passo avante com meu Mallarmé!". Segundo as notas da edição, também a menção a uma "Work in Progress" em carta de outubro de 1950 diria respeito a sua projetada versão musical de "Un Coup de Dés". Uma carta de 30 de dezembro de 1950 contém referências mais explícitas: "Além do 'Coup de Dés' de Mallarmé, comecei uma nova obra de câmara" ("Polyphonie X"). Mais adiante, depois de algumas explicações de cunho técnico sobre a divisão microtonal da escala em 1/4 e 1/3 de tom, de modo a obter até 1/18 a 1/24 de tom, observa: "Esses microcosmos poderiam ser organizados pelo princípio da série generalizada". E logo mais: "Estou pensando em terminar o meu 'Coup de Dés' de Mallarmé desta forma (fazendo construir um instrumento especialmente afinado para tanto)".
Em carta de 22 de maio de 1951, depois de discorrer sobre suas pesquisas com o "I Ching" e seus diagramas de acaso, à luz de novas composições como o "Concerto para Piano Preparado e Orquestra", as "16 Danças e Paisagens Imaginárias IV, para 12 Rádios", acrescenta Cage: "Você pode imaginar de minha presente atividade o quanto eu fiquei interessado pelo que você escreveu sobre o 'Un Coup de Dés' de Mallarmé". Boulez (carta entre 22 de maio de 17 de junho de 1951): "Acho (sua carta) extremamente interessante. Estamos no mesmo estágio de pesquisa". Cage chegou a pensar, por seu turno, em musicar "Un Coup de Dés". Carta de 1º de maio de 1953: "... um poeta daqui (francês) pediu-me que compusesse a música para uma leitura de 'Le Coup de Dés'. Gostaria de fazê-lo, mas eu lhe disse que você poderia já ter feito essa música e nesse caso ele deveria usar a sua. Ele vai lhe escrever a respeito disso. Não começarei nada até ouvir de você se devo ou não fazê-lo". Não há mais qualquer menção ao assunto na correspondência subsequente. Apenas em carta de Boulez de 18 de junho de 1953 ele avisa que está enviando a Cage a primeira edição completa da obra de Mallarmé, da Pléiade.
Com Mallarmé na cabeça, Boulez deve ter-se surpreendido quando, em São Paulo, ignorado pela imprensa e pelo grande público, foi procurado pelos poetas concretos, que, entre outras coisas, lhe perguntaram se ninguém pensara em fazer um composição sobre "Un Coup de Dés". Tocávamos, sem o saber, num ponto-chave de suas preocupações. Boulez dá um toque para Cage em sua carta de julho de 1954, de Buenos Aires: "Quanto a mim, estou na América do Sul por outro mês. O mesmo giro da última vez -Rio, São Paulo (onde encontrei um grupo de pessoas muito interessante). Montevidéu (entediante!). Agora Buenos Aires -depois Santiago do Chile".

Continua à pág. 5-6

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