São Paulo, domingo, 26 de outubro de 1997
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Boulez e Cage no lance de dados

AUGUSTO DE CAMPOS

Continuação da pág. 5-5

O nosso encontro se deu após uma conferência por ele realizada na Escola Livre de Música, dirigida por H.J. Koellreuter, na rua Sergipe. Terminada a palestra, nos reunimos com Boulez no apartamento do pintor Waldemar Cordeiro à rua Conceição. Conversamos muito, um pequeno grupo, confraternizando em Webern e Mallarmé (o de "Un Coup de Dés"), que os poetas concretos consideravam coincidentemente a base de suas propostas poéticas. Chegamos a improvisar para ele, inclusive, uma leitura a várias vozes de alguns dos poemas pluricoloridos da série de "Poetamenos" (1953), que já circulava entre nós em cópias datilografadas e estampadas com carbonos de várias cores. Mais tarde, empregaria, também ele, cores na partitura da sua "Terceira Sonata".
Uma carta, de 2 de junho de 1954, que escrevi a minha mulher, então no Rio, traz este registro do encontro: "... para erguer alguns dias está aqui Boulez, Pierre Boulez, o jovem músico concreto que há muito admirávamos e que veio agora com o Barrault. O Cordeiro (Waldemar Cordeiro) conseguiu cercá-lo numa festa-homenagem ao Barrault e trazê-lo domingo a uma reunião na sua casa. Comigo, Décio, Haroldo e um pouco o Willys (Willys de Castro). Boulez confirmou o que esperávamos. Acessível, inteligentíssimo, apenas 29 anos, lotou a gente em matéria de literatura, falando exatamente em Joyce, Pound, Cummings e Mallarmé. Esteve quatro horas seguidas com a gente, num francês claríssimo. Indagado sobre se alguém já tinha tentado musicar o 'Un Coup de Dés', disse: '- Não. Ninguém. Eu estou tentando'. Prometeu colaborar na revista e mesmo distribuí-la a amigos na Europa. Fez uma importante conferência. Amanhã fará outra, com audição de discos de música concreta. '- Stravinski est à genoux devant Webern.' Posso me enganar, mas penso que lhe está reservado um grande destino!". (Ele, de fato, cumpriu esse vaticínio, mas, quanto ao "Lance de Dados", ficou na promessa, ainda que o poema tivesse seguramente influenciado suas idéias musicais: quando ouvimos a primeira gravação de "Le Marteau sans MaŒtre", verificamos, com certa decepção, que, apesar do brilhantismo da obra, o "MaŒtre" não era Mallarmé, mas René Char...).
Eu só vim a revê-lo pessoalmente mais de 40 anos depois, na última visita que fez a São Paulo, em 1996, agora famoso, nalguns dos breves contatos exteriores que lhe permitiu a guarda régia de autoridades culturais e bonzos universitários, de que ele não conseguiu se livrar com facilidade. Ao contrário de Cage, que, quando aqui esteve, na Bienal de 1985, soube esquivar-se de programas e cerimônias oficiais e privilegiar os contatos informais, recebendo diretamente em seu hotel ou visitando, em particular, músicos, poetas e amigos.
O totem
O Acaso, enfim, ao mesmo tempo aproximaria e afastaria os dois grandes interlocutores. Se Boulez revelou Mallarmé a Cage, este, em contrapartida, apresentou-lhe nada menos que o "Finnegans Wake" de Joyce, os "Cantos" de Pound e a poesia de Cummings (de Gertrude Stein não há sinal, à época, embora Cage mencione seus estudos sobre a obra de Virgil Thomson, que deu vida musical às "óperas" de Stein, mas em relação ao qual Boulez expressa um juízo negativo, na carta de junho de 1950, parecendo-lhe interessante como personalidade, mas inconsistente como compositor).
Cage, que já musicara um texto do "Finnegans Wake" -em "The Wonderful Widow of Eighteen Springs" (1942!)-, presenteou Boulez com uma cópia do livro (em carta de janeiro de 1950, Boulez agradece: "Devo parecer uma toupeira por não lhe ter agradecido pelo 'Finnegan's (sic) Waker', de que gostei demais", e: "Mais uma vez mil vezes obrigado pelo 'FW'. Você não pode imaginar o quanto eu apreciei o livro. É quase um 'totem'. Na verdade, lê-lo é mais do que lento dada a dificuldade de decifrá-lo". Em carta posterior (abril de 1950), conta a Cage ter ouvido a gravação da voz de Joyce lendo trechos de "FW".
Da funda impressão que a obra de Joyce causou em Boulez diz bem esta importante passagem da carta precedente, em que avulta, ainda, o reconhecimento de Boulez do seu débito musical para com o compositor americano: "... você é a única pessoa que me trouxe ansiedade a respeito dos materiais sonoros que eu uso. Encontrá-lo me fez terminar um período 'clássico' com o meu quarteto ('Livre pour Quatuor'), que ficou bem para trás agora. Agora temos que chegar ao 'delírio' real em som e experimentar com os sons como Joyce fez com as palavras. Basicamente -agrada-me descobri-lo- eu ainda não explorei nada e tudo resta por pesquisar em campos tão variados como som, ritmo; orquestra, vozes; arquitetura. Temos que realizar uma 'alquimia' em som (ver Rimbaud) para a qual tudo o que eu fiz até aqui é apenas um prelúdio e que você clarificou grandemente para mim".
Diga-se que o entusiasmo de Cage por Boulez, à época, não era menor. Em carta de 18/12/50, referindo-se à première americana da "Segunda Sonata para Piano" por David Tudor, exclama: "Sua música dá àqueles que a amam uma sensação de iluminação capaz de elevar e de tirar o fôlego. Ainda fico sempre tremendo depois de ouvi-la". Em carta de 7/21 de maio de 1951, Boulez agradece o recebimento dos "Cantos" de Ezra Pound (cuja primeira edição completa saíra em Nova York em 1948). Quanto a Cummings, do qual muito mais tarde utilizaria um poema para a composição coral "Cummings Is der Dichter", também foi revelado a Boulez por Cage, quando visitavam uma livraria de Nova York, em 1952.
Não são poucas as contradições e os paradoxos dessas cartas e documentos. Duríssimos, mas quase sempre certeiros, alguns juízos de Boulez parecem superados. Assim a sua desconfiança para com a música de Scelsi, rapidamente dispensado, em carta de novembro de 1949, mais ou menos na base do não ouvi e não gostei ("Estou criticando sem ter ouvido", reconhece, a propósito da cantata "La Naissance du Verbe"), e cuja obra, melhor conhecida a partir dos anos 70, desvelaria um compositor fundamental. Ou as suas considerações sobre Mondrian ("Prefiro, de longe, Klee").
Compreende-se que Boulez ache demasiadamente "imprecisas" e "simples" as experiências de Morton Feldman com "quadrados brancos" -os diagramas que Feldman fornece, em vez de partituras, contendo instruções para a execução de suas peças indeterminadas, "Projections e Intersections". Mas ele debilita sua crítica quando associa Feldman a Mondrian e tenta justificar-se, afirmando ser contra a "facilidade" do pintor holandês. Como não concordar com o assombro de Feldman ante esse julgamento ("Ele ficou mortificado -trocadilha Cage- por saber que você também não gosta de Mondrian")? Atribuir "facilidade" ao despojamento da obra de Mondrian (muito mais próxima do que a de Klee da fase madura, a mais ortodoxa, de Webern), parece realmente um equívoco espantoso, do qual, deve-se dizer, Boulez penitenciou-se em declarações ulteriores, colocando Mondrian entre os artistas que mais o influenciaram, embora deixe patente a sua maior sintonia com Klee e a sua incompreensão da última fase de Mondrian, que ele aproxima da regressão estética do derradeiro Schoenberg. Em seu paraíso plástico, nenhum Duchamp, por certo...
Registro especial merece a belíssima carta de Boulez (a única datilografada de toda a coleção, e em minúsculas, à maneira de Cummings), enviada de Baden-Baden, em 5 de setembro de 1962, muitos anos, portanto, depois de definido o conflito entre os dois músicos. Em resposta a uma carta, infelizmente perdida, em que Cage pede a sua interferência para que receba um convite para viajar à Europa, Boulez o informa que há quatro anos já não vive em Paris. Lembrando que naquela data Cage completava 50 anos, Boulez entra a fazer digressões sobre o tempo e a idade de ambos: "Se você vai fazer 50, eu cheguei aos 37, a idade que você tinha quando nos encontramos pela primeira vez em Paris... o que ao menos me deixa com a esperança, a julgar pelo seu exemplo, de que eu tenha uma porção de coisas a descobrir antes de chegar aos 50, quando você terá 63!! e assim por diante, até que nos tornemos (do que eu duvido) hipercentenários, quando a diferença relativa tenderá a zero, ainda que, mesmo aí, estou certo, a distância absoluta permaneça constante".
Numa sequência poética de neologismos joyceanos, vislumbra um tempo que não é "o tempo anterior, nem o tempo recente, nem o tempo de agora, nem o tempo que virá, mas o tempo gelabolido, fixexplodido, espelhorrefletido, magirradiante, narcoseleito, achaperdido, perdido, perdido? sim? ido!". E mais à frente: "Ora, bem, para o seu jubileu (que, para voltar aos meus cálculos, significa que você tinha exatamente duas vezes a minha idade em 1938 (...) -um período em que você tinha 26, e eu 13 anos- não há nada com que se preocupar, é um divertido problema algébrico exposto em todas as boas revistas de divulgação científica". Finalizando: "Eu ao menos o fiz sorrir na expectativa desse marco de meio século? enquanto espera -não tanto quanto eu espero o seu sorriso pelo correio, ao menos você tem a habilidade do gato da alice- você deduzirá desta carta ou que eu cresci consideravelmente, ou que eu retornei à infância, é essa a mensagem que eu gostaria de deixar, em conclusão, nestes difíceis tempos relativistas. Como sempre, malgrado a óbvia falta da rue beautreillis, permaneço um capuchino (a rua de Boulez, em Baden-Baden, era a Kapuzinerstrasse) que pensa, mais do que com atenção, com ternura, em você".
Da perspectiva de hoje, é difícil dizer qual dos dois tinha razão. Se as conhecidas críticas de Cage aos serialistas europeus e à rigidez dos seus conceitos passaram a ganhar sentido, especialmente depois da fase inicial, quando esse radicalismo parecia absolutamente necessário, não se revelaram menos razoáveis as desconfianças de Boulez ante o vale-tudo das composições indeterminadas, mormente quando os dados eram lançados por mãos menos íntegras que as de Cage. Este mesmo chegou a dizer certa vez: "Preciso encontrar um meio de fazer com que os músicos sejam livres, mas não sejam estúpidos".
Se o rigorismo bouleziano teve que flexibilizar-se, não se pode dizer que a indeterminação cageana tenha prevalecido, embora o exemplo radical de Cage tenha afetado profundamente o ato de compor e contribuído para descongestioná-lo dos excessos do serialismo racionalista. Boulez nunca deixou de preocupar-se com a elaboração da obra, que além de provocar pela novidade deveria também encantar ou elevar pela perfeição, tendo o rigor estrutural como uma espécie de ética estética. Cage pareceu progressivamente menos interessado em criar obras acabadas do que em desencadear ações ou situações musicais imprevistas, que induzissem a uma deslavagem da memória musical e a uma renovação da mente.
Tudo somado, talvez seja o caso de adotar a fórmula dialética: "Um estava certo, mas o outro também não estava errado". De Boulez e de Cage (aquele num concentrado estilo polêmico-mallarmeano, este no informalismo de sua prosa-poesia gráfico-espacial) provieram os mais instigantes escritos sobre música deste século. Deles também emanam algumas de suas obras capitais. As cartas documentam significativamente o seu encontro, deixando à nossa especulação, como enigma a ser decifrado, entre muitos silêncios, reticentes escaramuças e palavras inconclusas, o desencontro e a abertura de duas formas de ver a música. Pelas frestas desse embate se infiltraram, ao longo dos anos, outros caminhos e outras opções, mas que não infirmam a contribuição dos dois grandes músicos e os lances dos dados de sua imaginação sonora, que podem ser vistos, deste centenário do antes famigerado e hoje famoso poema de Mallarmé, como ápices do pensamento musical contemporâneo.

Onde encomendar:
"The Boulez-Cage Correspondance", organizada por Jean-Jacques Nattiez e editada pela Cambridge University Press (US$ 16.95), pode ser encomendada, em SP, à Livraria Cultura (av. Paulista, 2.073, tel. 011/285-4033) e, no Rio, à Marcabru (r. Marquês de São Vicente, 124, tel. 021/294-5994).

Texto Anterior: Boulez e Cage no lance de dados
Próximo Texto: O gênio de Glenn
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.