São Paulo, segunda-feira, 27 de outubro de 1997
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O abandono e as peruas

JOSÉ SERRA

Quando criança, na cidade de São Paulo, eu ouvia falar com regularidade e via os sinais de quebra-quebra de ônibus no centro da cidade, pelos lados da Sé e da antiga praça Clóvis Bevilacqua.
Eram manifestações de protesto contra reajustes de tarifas dos transportes coletivos, já então considerados caros, desconfortáveis e escassos. Um protesto desesperado e a tentativa de obter a melhora dos transportes mediante a violência.
Esse comportamento de usuários não é a única forma de protesto possível, nem a única maneira de reagir diante de um serviço (ou produto) ruim oferecido ao público. Este pode também, ao lado de protestar, abandonar esse serviço, procurando outra forma de resolver o seu problema. Como aconteceu, aliás, com o transporte ferroviário, que foi sendo deixado de lado em favor do rodoviário.
É evidente que o abandono exige outras possibilidades que os usuários de transportes urbanos dos anos 40 ou 50 não tinham. E o metrô não veio a ser alternativa, pois a oferta dos seus serviços se revelou insuficiente.
Pois nos anos 90 foi aparecendo uma alternativa "elástica": o transporte em peruas. Que a alternativa é concreta não há dúvida: pelo mesmo preço os usuários obtêm um serviço que consideram mais rápido, confiável e confortável, embora mais inseguro (ver pesquisa Datafolha).
Ao migrarem para os perueiros, os usuários exercem, além do seu direito legítimo, uma formidável pressão para que os transportes coletivos, como os ônibus, melhorem. Como em economias de mercado: se você não gosta de um produto, mude sua preferência.
Isso, porém, não tem impedido que os setores ameaçados pela concorrência corram à barra da saia do poder público, pedindo proteção e eliminação dos competidores, pela força se necessário. Afinal, as linhas de ônibus perderam 5 milhões de passageiros/mês para os perueiros. Isso apesar de cobrarem a maior tarifa do Brasil, disporem de frotas imensas e receberem subsídios da prefeitura: cerca de R$ 20 por paulistano, em 1996.
Como é evidente, não seria concebível que, em vez dos 10.800 ônibus que circulam em São Paulo, entrassem em ação 100 mil peruas. O congestionamento produzido por elas seria pior do que o dos ônibus. Mas a solução não é reprimir os perueiros e impedir a legalização da frota de peruas em boas condições, deixando então os usuários à mercê dos que descuidam da segurança e dos impostos. É fazer mais metrô, corredores de ônibus e melhorar as condições deste transporte.
É pena que a ação de abandono de parte dos usuários não teve, até agora, sua expressão política. Do contrário, a cidade não teria sido vítima da administração anterior, que investiu em obras para o transporte individual -piorando o já pior trânsito do Ocidente- o suficiente para a construção de uns 30 quilômetros de metrô e outros tantos de corredores de ônibus. O drama do trânsito e o transporte coletivo em São Paulo não é fruto apenas de empresários gananciosos, que existem, mas também, e principalmente, do padrão malufista de investimentos públicos que inferniza a cidade há quase 30 anos, baseado no sobrepreço (vide av. Águas Espraiadas) e no privilégio besta, único e sagrado ao automóvel.

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