São Paulo, quinta-feira, 30 de outubro de 1997
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A guerra do tempo

MOACYR SCLIAR

Os dois eram jovens, talentosos, elegantes. Os dois eram ambiciosos e competitivos. Os dois eram altos executivos em uma grande corporação multinacional. Os dois tinham escritórios em salas adjacentes. Os dois se encontravam a todo instante em reunião de trabalho.
Era natural que competissem? Claro. Era apenas natural que competissem; afinal, tantos executivos competem entre si. O curioso foi a forma que escolheram para competir, o ponto de referência para comparação de status.
Relógios. Não chega a ser um item original, ao menos para executivos, pessoas habitualmente atentas ao tempo e a sua medida. Além disso, relógio é um objeto conspícuo, facilmente visível, principalmente em pessoas dinâmicas, que tiram o casado para trabalhar. Quando, certo dia, um deles disse ao outro: "Bonito o seu relógio, já tive um assim, mas joguei fora quando ficou superado", a competição teve início.
No começo, o principal critério era o do progresso tecnológico. Um deles aparecia com um relógio com calculadora; o outro arranjava um relógio com calculadora mais agenda de endereços. O primeiro acrescentava ao equipamento um minigravador. O segundo então mostrava barômetro, termômetro, altímetro, o diabo.
De repente, a forma de competição mudou. O objetivo já não era estar atualizado. Isso, eles notaram, qualquer pé-rapado consegue indo ao Paraguai. Não, a coisa agora era ser antigo, aristocrático.
Retornaram ao relógio de corda, e o objetivo aí era a antiguidade; um deles vinha com o relógio de pulso de 1920, o outro respondia com um Patck Philippe de 1910. Os antiquários, avisados da competição, forneceram o que foi possível, até que nada mais havia de estoque nas lojas.
Aí o primeiro teve uma idéia genial. Chegou para uma reunião da empresa, abriu uma bolsa, e tirou de lá um estranho objeto. O que é isto, perguntaram os colegas, surpresos:
- Uma ampulheta -foi a triunfante resposta. Uma autêntica ampulheta. Duvido que haja relógio mais original.
O segundo não disse nada. Mas desde então vem estudando fotos do Big Ben, em Londres. Seria, ele está convencido, a jogada definitiva.

O escritor Moacyr Scliar escreve nesta coluna, às quintas-feiras, um texto de ficção baseado em notícias publicadas no jornal.

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