São Paulo, quinta-feira, 30 de outubro de 1997
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A guerra nossa de cada dia

EVELYN BERG IOSCHPE

Num mundo ainda muito belicoso -que assistiu a violentos embates na Bósnia e na Chechênia, guerras civis na África, guerrilhas na Europa e na América Latina e conflitos entre árabes e israelenses-, o Brasil ostenta um recorde muito triste: é o país com o maior número de assassinatos.
Aqui, 45 mil pessoas são mortas todos os anos por armas de fogo. Essa incômoda posição é denunciada em recente relatório da ONU, pouco divulgado pela imprensa. Para ter uma idéia da gravidade desses números, é interessante compará-los com os de alguns dos conflitos mais violentos do século. Nos dez anos da guerra do Vietnã (1964/73), morreram 225 mil pessoas (média de 22,5 mil por ano); a guerra da Bósnia, em quatro anos (1992/95), matou 200 mil pessoas (50 mil por ano).
O Brasil tem, portanto, um índice de mortalidade por armas de fogo equivalente a duas guerras do Vietnã ou a uma guerra da Bósnia por ano. É muita violência para um país que pretende ser democrático e se orgulha de ser pacífico.
Os números denunciam, na verdade, que a designação de "país pacífico" não nos cabe. Assistimos a uma virtual guerra civil, que ceifa mais de cem vidas por dia.
Em Israel, quando um soldado é morto, fotos da tragédia são distribuídas para o mundo todo. No Brasil, são cerca de cem soldados desconhecidos por dia, numa guerra de causa não questionada.
Qualquer análise superficial nos remete à conclusão de que falamos das vítimas da imensa dívida social que o Brasil carrega consigo, transportando os números de um déficit anual ao próximo, como se fosse um passivo sem volta.
Evidentemente, não estamos aí sozinhos: globalização rima com concentração (de riquezas), com desemprego estrutural e com megalópole. Prenunciando o século 21, como observa Marília Gomes de Carvalho, a cidade global é simultaneamente mercado, centro de poder político, local de decisões econômicas, ninho de idéias científicas e filosóficas e lugar de manifestações artísticas.
Mas é também nas megacidades que a diversidade pode se transformar em estigma de desigualdade, fonte da violência urbana. As cidades muradas da Idade Média, defesa contra o inimigo externo, hoje são substituídas por unidades de moradia muradas, fortalezas contra um inimigo agora interno.
Num país em que as diferenças religiosas não criam inimigos, como na Grã-Bretanha, e as diferenças raciais não geram o "apartheid" que a África do Sul experimentou, o "inimigo" é a vítima do déficit social, que não teve acesso aos direitos da cidadania plena.
Milhões de brasileiros não têm nem acesso à certidão de nascimento, que deveria ser gratuita, se este não fosse um país cartorizado.
A mortalidade infantil na população de baixa renda é o primeiro assassinato em massa da população pobre, que se educa menos e pior, que se alimenta mal, sem acesso a condições sanitárias decentes.
Pobreza, no Brasil, não se coloca como um estado para superação: é um estado para exclusão. Porém, nas megacidades, os dois extremos da escala social repartem o mesmo espaço físico; na ausência da democratização das oportunidades, socializa-se a violência.
Assim, paralelamente às medidas do Estado voltadas à melhoria da segurança pública, o Brasil carece, com urgência, de uma forte e decisiva ação no campo da cidadania. A sociedade civil, de forma organizada e democrática, deve mobilizar-se cada vez mais no sentido de reduzir as disparidades sociais.
Paulatinamente, cresce a consciência sobre a assunção da cidadania. Empresas, fundações, institutos, ONGs e entidades de classe têm dado exemplos de que a sociedade pode e deve trabalhar para solucionar seus problemas.
Essas instituições vêm ocupando um espaço que o paternalismo centralizador do regime de exceção de 64 lhes tirara. Estima-se que organizações privadas brasileiras de origem empresarial destinem hoje US$ 300 milhões/ano a projetos de atendimento à criança e ao adolescente, saúde, educação e meio ambiente, praticamente sem nenhum incentivo fiscal.
O Brasil tem jeito, sim, e não pretende continuar sendo uma Bósnia ou dois Vietnãs. Até porque, no mínimo, tem vergonha na cara.

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