São Paulo, sexta-feira, 31 de outubro de 1997
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Biografia revela Dalí por trás da máscara

Alejandro V. García

ALEJANDRO V. GARCÍA
DO "EL PAIS"

Um homem de uma timidez patológica, escondido atrás de uma máscara. Assim é o retrato pintado em "The Shameful Life of Salvador Dalí" (A vergonhosa vida de Salvador Dalí), a biografia do pintor escrita por Ian Gibson.
"Dalí e Gala só acreditavam neles mesmos, os outros não importavam. Dalí não se importava em assinar papéis em branco. Agora, o mercado está cheio de falsificações", diz o autor.
Por ocasião do lançamento do livro na Faber and Faber, a BBC transmitirá dois documentários sobre Dalí. Para ele, a verdade histórica não tinha importância. A sua vida secreta é uma coleção de meias verdades escritas por ele mesmo para despistar seus biógrafos", assegura Gibson, que revisa a tradução espanhola, a ser lançada em 98 pela editora Anagrama.
A origem da biografia do pintor catalão está na de García Lorca, também escrita por Gibson. "Estava interessado em Dalí, era apaixonado pelo surrealismo. Quando saiu o primeiro volume da biografia de Lorca, Antoni Pitxot leu para Dalí os trechos em que descrevo seu relacionamento com Federico. Ele mandou me chamar. Estávamos em 1984 e Dalí já estava muito doente. Era um ser patético, estava entubado e tinha o olhar perdido. Para ele, era muito importante conservar sua máscara. Não recebia os amigos para que não o vissem naquele estado", diz Gibson.
"Lorca esteve sempre presente na sua vida. Foi seu último amigo. Dalí conhecia a obsessão de Lorca pela morte, tinha assistido às cerimônias que ele organizava, nas quais dramatizava seu enterro."
A relação amorosa com Lorca não culminou em contato carnal. Segundo Gibson, Dalí temia que o amigo quisesse possuí-lo, porque essa seria uma forma de reconhecer sua homossexualidade. "Dalí queria ser mulherengo, mas tinha um enorme problema com seu pai, um homem capaz de enorme violência. Não sabemos o que aconteceu entre pai e filho."
Lorca e Dalí se conheceram na Residência de Estudantes, em 1923. Em sua autobiografia, Dalí conta que a única vez que sentiu inveja foi quando conheceu Lorca. Sabia que não poderia competir com ele.
"É o pior que pode acontecer a um ser humano" disse Dalí, e por isso decidiu ir embora antes de ter de presenciar o sucesso de Lorca, lembra Gibson.
Os diários de Dalí adolescente, publicados em 1994, em catalão, são fundamentais. "Dalí fala de suas idéias, de seus amigos, de suas simpatias políticas orientadas para o comunismo. Lá estão as pistas fundamentais para avaliar sua vida e sua obra ", explica Gibson.
Nesses diários, intitulados "Impresiones y Recuerdos Íntimos", Dalí traça seu projeto de vida: estudará em Madri, em Roma, e depois será um gênio. Só não determinou seu projeto intermediário.
"Aos 16 anos, para lutar contra sua impotência -tem um pênis tão pequeno que acredita que não lhe servirá de nada- decide se transformar em Dalí. Sexualmente, foi um grande 'voyeur'. Gala, seu grande amor, era uma mulher experiente. Tinha tido relacionamentos com Giorgio de Chirico, Max Ernst e, pouco antes de conhecer Dalí, com Paul Eluard. Foi ela que iniciou Dalí. Ele gostava de organizar cerimônias eróticas, teatrais, cheias de luzes. Ficava em um canto, se masturbando. Não tocava em ninguém, tinha horror ao contato físico" diz Gibson.
Hitler
Salvador Dalí ficou fascinado pela ascensão de Hitler ao poder. Segundo Ian Gibson, Dalí era um revolucionário e, ao mesmo tempo, um terrível individualista. No início dos anos 30, quando aderiu sem reservas ao movimento surrealista, aceitou seus postulados: para que o mundo possa mudar, o homem deve mudar.
Naquela época os surrealistas enfrentavam os mesmos fins e objetivos do marxismo. Todos apostavam na revolução. "Aqueles anos foram sua melhor época", explica Gibson. Em meados da década de 30, as idéias políticas de Dalí são decantadas pelo nazismo.
"Dalí foi um grande individualista que se sentiu atraído pela ascensão de Hitler. Seus objetivos eram o poder, a força; queria o maior poder para lutar contra o pai", acrescenta o biógrafo. Quando a Guerra Civil espanhola teve início, Dalí viajou para os Estados Unidos, onde permaneceu até 1948.
"Dalí queria voltar o mais rapidamente possível a Port Lligat, mas para isso precisaria aceitar um determinado grau de submissão, se transformar em um bom rapaz", comenta Gibson. "É difícil saber se o pintor foi um franquista convicto. À sua maneira, admirava Franco por conseguir impor controle e ordem."
Uma fonte fidedigna do pensamento de Dalí no período de 1930 a 1938 é a correspondência que manteve com André Breton, pai do surrealismo. As cartas, no entanto, estão praticamente inacessíveis. Uma das razões é que estão distribuídas em dois arquivos diferentes, um em Paris e o outro em Edimburgo, na Escócia.
Além disso, lamenta-se Gibson, alguma cláusula do testamento de Breton impede não só fotocopiá-las, mas também citar seu conteúdo. Esse é um obstáculo insuperável -segundo Gibson- para compreender como ocorreu a transformação da ideologia de Dalí, a partir de suas simpatias juvenis expressas nos diários até as crenças surrealistas e a admiração por dois grandes ditadores.
A morte de Gala e, pouco depois, a do próprio Dalí, foram a culminação de um longo período iniciado na década de 60 e caracterizado por ganância e corrupção.
"Dalí foi para Pubol com o cadáver de Gala e abandonou Port Lligat à sua sorte", diz Gibson.
A sua ausência foi aproveitada por indivíduos que saquearam o local.
"Quanto às cartas de García Lorca que Dalí conservava, elas se perderam ou foram roubadas. Atualmente, só temos duas das cerca de 50", diz Gibson.

Tradução Maria Carbajal.

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