São Paulo, sexta-feira, 31 de outubro de 1997
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

A reorientação urgente do Plano Diretor

LUIZ CARLOS COSTA

Quem assistiu ao melancólico encerramento do chamado "ciclo de debates sobre o Plano Diretor", promovido pela Secretaria de Planejamento paulistana (Sempla), não pôde deixar de compará-lo à intensa vibração vivida pela Câmara Municipal durante o dia.
Ela se transformara em verdadeira praça de guerra, devido a um dos muitos problemas urbanos explosivos -no caso, o do transporte coletivo- cujo agravamento se deve justamente ao fato de serem tratados por ações tópicas, improvisadas ou paliativas, impotentes para atingir as causas estruturais das contradições da metrópole.
É o que me faz voltar, agora para um público maior, às considerações que, a convite da Sempla, apresentei na primeira sessão daquele ciclo sobre o conceito e a estruturação do Plano Diretor.
Disse, na ocasião, que importava ter absolutamente presente o papel especialíssimo definido na Constituição para o Plano Diretor. Ou seja: um instrumento institucional que permitirá estabelecer a orientação estratégica e os meios para alterar substancialmente o processo de desenvolvimento urbano, de maneira que, em um próximo período de sua história, seja possível atingir os objetivos que a sociedade reconhece como indispensáveis para enfrentar a atual crise da cidade e conduzi-la a uma nova etapa de desenvolvimento.
Elaborar um plano com esse escopo e essa abrangência num contexto democrático é tarefa especialmente delicada. Trata-se de socializar um processo de tomada de decisões encadeadas, que vão da definição de objetivos e princípios básicos à proposição de programas e instrumentos de ação a serem consagrados em lei e implementados nos próximos 20 anos -período bem superior ao de cada administração.
Procurando contribuir para o debate do conceito e da estruturação do plano, apresentei um diagrama de sua elaboração, no qual se visualizam as decisões básicas que teriam de ir sendo trabalhadas, tanto em nível técnico como político e administrativo, para que se pudessem assegurar três produtos essenciais: um conjunto coerente de políticas públicas, um conjunto de diretrizes sobre a estruturação do espaço urbano (plano urbanístico) e um sistema permanente de planejamento para a cidade.
Não cabe analisar aqui os vários elementos do processo de elaboração, mas é importante sublinhar que o plano só ganhará eficácia se representar a construção de um consenso que possa ser estabelecido entre os diferentes segmentos e agentes da sociedade, que, apesar de ter valores e interesses distintos ou contraditórios, estarão basicamente dispostos a adotar uma estratégia comum para o futuro da metrópole.
Aponta-se, assim, para a natureza essencialmente política do plano e de seu significado como pacto urbano, a vigorar em determinado período histórico.
Para corresponder a essa dimensão, propõe-se que o plano seja feito em duas etapas. A primeira visará definir objetivos-chaves, princípios e diretrizes gerais constitutivos de uma política de desenvolvimento urbano avalizada pela sociedade para o período considerado e orientadora de toda a elaboração técnica subsequente do Plano Diretor.
O mais importante nessa etapa é que toda a sociedade perceba o plano como uma oportunidade única para o equacionamento eficaz e harmonioso de problemas inadiáveis, que, sem possibilidade de resolução por medidas isoladas e de curto prazo, comprometem fortemente a vida dos cidadãos e o desenvolvimento econômico da cidade.
Por exemplo, os relativos ao tráfego e aos transportes coletivos, a saneamento básico e enchentes, a moradia e serviços públicos essenciais para a maioria da população, à poluição do ar e das águas ou, em especial, à redução das desigualdades sociais geradoras da miséria e da violência urbanas.
A segunda etapa terá de ser dedicada à definição de um conjunto coerente de diretrizes e instrumentos de ação executiva e normativa a implementar no período. Esses elementos deverão ter tecnicamente demonstrada sua eficácia ante os objetivos fixados e sua viabilidade ante os recursos tidos como mobilizáveis. Além disso, terão de se fundamentar em compromissos publicamente firmados com todos os órgãos estaduais, federais e municipais de atuação relevante na metrópole, com os setores empresariais e com as comunidades organizadas.
O papel-chave do poder público na formulação desse plano será assegurar a toda a sociedade sua plena confiabilidade. Em termos de objetividade diante dos problemas sociais, funcionais e ambientais mais graves, obviamente dependentes de diagnósticos competentes para sua solução; em termos da legitimidade das decisões nele contidas, o que depende de mobilização e participação dos diferentes segmentos e agentes sociais envolvidos no processo urbano; e, ainda, em termos de operacionalidade e consequências práticas, o que implica a escolha de instrumentos, parâmetros e diretrizes que apontem para ações a ser obrigatoriamente cumpridas pelos poderes públicos no período planejado.
Diante dessas premissas e orientações, há que reconhecer que o projeto elaborado pela Sempla se configura como claramente insuficiente e gerador de riscos inaceitáveis.
Primeiro, porque são enunciados objetivos genéricos, que nada asseguram sobre o real enfrentamento dos desafios impostos à sociedade pelo desenvolvimento urbano.
Segundo, porque, ao liberalizar o processo imobiliário em relação aos limites legais e ao controle que a sociedade pode e deve exercer, o projeto gerará efeitos desastrosos -já denunciados à sociedade- quanto ao congestionamento da infra-estrutura, à perda da qualidade de vida dos bairros e às agressões ao meio ambiente.
Terceiro, porque a forma do debate negou o princípio da participação dos cidadãos e da sociedade civil, de há muito exigido do planejamento, inclusive em termos constitucionais. Não ensejando nem sequer o conhecimento dos diagnósticos e dados em que se baseiam as proposições, o ritual imposto pela Sempla definitivamente não fez jus à inteligência e à liberdade dos cidadãos e comunidades. Deixou de propiciar uma efetiva troca de idéias, indispensável à formação do consenso e à emergência de propostas alternativas.
Caso a Sempla mantenha o projeto elaborado, apesar das críticas quase unânimes, estaremos assistindo a uma imposição autoritária de uma proposta que, por sua precariedade, todos querem reformular. Tenho confiança, no entanto, em que tanto o plano como o seu debate poderão ser, daqui por diante, radicalmente reorientados, o que ensejaria o aproveitamento das muitas sugestões apresentadas, visando uma condução dos trabalhos mais compatível com as exigências da cidadania.

Texto Anterior: Órfãos do conhecimento histórico
Próximo Texto: Privatização; Desacordo; Contradição; Discordância; Nada de novo; Classe média; Obra eleitoral; Sugestões; Auditoria e fiscalização; Mata atlântica
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.