São Paulo, sexta-feira, 31 de outubro de 1997
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Órfãos do conhecimento histórico

OSCAR KNAPP

No seu artigo "Os órfãos de Hitler" (Folha, 21/10), o professor Ricardo Seitenfus faz observações pouco fundamentadas e totalmente inaceitáveis contra a atitude do meu país durante a Segunda Guerra. De fato, elas constituem um insulto à geração de suíços que defendeu sua pátria em circunstâncias tão adversas. Vamos aos fatos.
"Berlim nunca se propôs a ocupar a Suíça." Nada mais falso do que essa tese. Pouco após o início da guerra, a Suíça -situada no centro da Europa e sem acesso ao mar- estava cercada pelos nazistas e pelos fascistas.
Após ocupar a França, Adolf Hitler tinha planos muito concretos para invadir a Suíça. Durante todo o conflito, o povo suíço viveu sob a permanente ameaça de ocupação nazista. Mais de 400 mil soldados -10% da população- foram mobilizados.
"A Suíça somente foi respeitada pelos nazistas em face de sua importante colaboração." Apesar do cerco, o país permaneceu uma verdadeira democracia, com uma mídia fortemente crítica em relação ao nazismo. O povo suíço estava decidido a defender a pátria. O seu grande desafio era sobreviver.
Para abastecer-se, o país tinha que prosseguir com as suas transações comerciais com o exterior, inclusive com a Alemanha. Eis um número que dá uma idéia clara das proporções: os custos de guerra do 3º Reich foram estimados em US$ 850 bilhões. As exportações e as transações financeiras da Suíça alcançaram mero 0,5% dessa soma. A Suíça, um importante colaborador?
"Os suíços não hesitaram em obter um lucro ilegítimo a partir da desgraça alheia", referindo-se ao ouro nazista. O Banco Nacional Suíço continuou suas transações em ouro com o exterior durante a guerra. Era questão de sobrevivência. No entanto, será conveniente observar que elas foram mais intensas com os aliados (US$ 1,8 bilhão) do que com a Alemanha (US$ 1,2 bilhão).
A questão da transferência do ouro nazista foi negociada após a guerra, no âmbito do Acordo de Washington. Dando sequência às negociações, a Suíça indenizou os aliados, que declaram que "todas as reclamações sobre o ouro adquirido da Alemanha pela Suíça durante a guerra foram saldadas".
"Contas adormecidas": a Suíça não foi, sem sombra de dúvida, o único país onde grupos étnicos perseguidos por Hitler depositaram o seu dinheiro. Mas foi o único que conduziu investigações para identificar contas adormecidas.
Após ter analisado o passado, e restituído as somas a quem de direito, a Associação Suíça dos Banqueiros, em acordo com o Congresso Mundial Judeu (WJC), criou uma comissão independente, sob a presidência de Paul Volcker, ex-presidente do Fed (banco central dos EUA). Essa comissão está analisando todas as contas adormecidas há dez anos e abertas antes de 1945. Que outros países sigam o exemplo.
É lamentável que o autor tenha tratado com tamanha leviandade essa parte da história, tão dolorosa e difícil. Acho improvável que tenha consultado as numerosas análises científicas existentes antes de lançar-se a escrever seu pobre artigo. O conhecimento histórico tem seus órfãos...

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