São Paulo, domingo, 2 de novembro de 1997
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Blocos evidenciam o conflito entre globalizar e regionalizar

CLÓVIS ROSSI
DO CONSELHO EDITORIAL

A globalização produziu, pelo menos em matéria de comércio internacional, um dilema que lembra a propaganda dos biscoitos Tostiness, aqueles que ninguém sabe se vendem mais porque são fresquinhos ou se são fresquinhos porque vendem mais.
Idêntica questão cerca os acordos comerciais regionais, como o Mercosul: grandes especialistas em comércio internacional e até as entidades que o supervisionam não têm certeza se os blocos são apenas etapas necessárias e positivas na direção de um mundo sem barreiras ou se minifortalezas que, no limite, impedirão a queda de todas as fronteiras.
Esse dilema ocupa lugar de destaque na agenda do italiano Renato Ruggiero, diretor-geral da OMC (Organização Mundial do Comércio), entidade que funciona como uma espécie de superxerife do comércio planetário.
Ruggiero repete sempre que um dos grandes desafios para a OMC é "assegurar que os obstáculos nacionais (ao comércio) não sejam simplesmente substituídos por obstáculos regionais".
Traduzindo: impedir que países como o Brasil, antes fechados, derrubem barreiras que constavam de suas regras internas apenas para reerguê-las mais adiante via mercado regional.
Ruggiero acha que blocos regionais podem, sim, funcionar como etapas para um mundo sem fronteiras, desde que pratiquem o que o jargão designa como "regionalismo aberto". Ou seja, desde que cada bloco não se feche em si mesmo, mas vá estendendo aos demais países, paulatinamente, as facilidades que concede aos países-membros.
Se se fizer o contrário, "chegaríamos em não mais de 20 ou 25 anos a uma divisão do comércio mundial em duas ou três zonas preferenciais intercontinentais, cada uma com suas próprias normas e um regime de livre comércio dentro da zona, mas continuariam existindo obstáculos externos entre os blocos", diz Ruggiero.
A definição mais pragmática de um bloco comercial regional pertence a Jeffrey Lang, subchefe do USTr, o organismo que cuida do comércio internacional norte-americano: "Toda vez que se conclui um acordo comercial que reduz as barreiras entre as partes, e tais partes não incluem os EUA, os produtores norte-americanos ficam em desvantagem".
Mudando o nome do país, esse raciocínio pode ser aplicado por qualquer autoridade de qualquer nação excluída de acordos regionais. Quando o Brasil, em função do Mercosul, reduz as barreiras para produtos argentinos, está criando desvantagens para os produtores de todos os seus demais parceiros.
Os números do Mercosul, entre 1990 e 1995, anos que podem ser tomados como marcos de sua consolidação, provam a tese: as importações que os quatro países que o integram fizeram de seus parceiros no bloco cresceram, no período, 218%.
Já as importações provenientes dos dois outros grandes parceiros do Mercosul aumentaram bem menos: as provenientes da União Européia subiram 172%, e, as do Nafta (EUA, Canadá, México), apenas 150%.
É o que, no jargão do comércio global, se chama de "desvio de comércio". Ou seja, ao dar facilidades para que, por exemplo, o leite argentino La Serenisima entre no Brasil, "desviam-se" importações de leite suíço, digamos. Ou, na ponta das exportações, ao terem facilidades para vender na Argentina, os produtores brasileiros podem se sentir menos pressionados a modernizar-se para poder vender também para o Japão, por exemplo.
Esse conflito entre globalização e regionalismo é tão latente que ganhou a capa da revista britânica "The Economist", no fim de 1996, que analisou os supostos riscos que o regionalismo representa para o comércio global: "Ao liberalizar o comércio só com seus vizinhos, os países estão, por definição, discriminando os que não têm a sorte de estar no clube local".
A questão é saber se os "clubes locais" caminham para integrar-se a outros clubes, de forma que, num futuro não remoto, haja um grande bloco, do tamanho do planeta, ou se tendem a fechar-se em três ou quatro grandes conglomerados em guerra comercial uns com os outros.
A preocupação de Ruggiero, da OMC, não é exatamente com o Mercosul ou o Nafta ou nem sequer com a União Européia, o conglomerado de 15 países que está mais avançado do que qualquer outro no processo de integração regional.
É com o projetado casamento entre o que ele chama de "iniciativas regionais verdadeiramente gigantescas".
É uma designação apropriada para três grandes hipóteses de superblocos, a saber:
1) o acordo-quadro entre a União Européia e o Mercosul, que prevê a criação de uma zona de livre comércio entre os 19 países dos dois blocos a partir de 2005;
2) a intenção de 34 países americanos, excluída só Cuba, de fazer a mesma coisa no mesmo prazo nas Américas, a Alca (Área de Livre Comércio das Américas);
3) o projeto da Apec (Cooperação Econômica Ásia-Pacífico) de criar uma zona de livre comércio em duas etapas, a primeira em 2010, e, a segunda, em 2020.
Qualquer dos três projetos que se concretize criará a maior zona de livre comércio do planeta.
Nada impede, em tese, que cada uma dessas grandes zonas de liberdade comercial conflua com as outras e se tenha uma liberalização de escala planetária.
Mas, diz com razão Ruggiero, "o sistema multilateral carece de um plano detalhado comparável para a eliminação de todos os obstáculos ao comércio".
Na falta de um projeto global, o risco é o de que cada superbloco se feche para os demais, o que, além do risco de uma guerra comercial, marginalizaria países gigantescos, como China e Rússia, que, até agora, não entram em esquema algum.
É sintomático que a União Européia e os EUA estejam empenhados em uma surda guerra para ver qual dos dois consegue fechar antes o acordo com o bloco sul-americano. No Brasil também há uma surda guerra de argumentos entre os pró-Alca e os pró-União Européia.
Números pouco provam
As tendências mais ou menos recentes no comércio internacional não deixam perfeitamente claro se há um predomínio do regional sobre o global.
Numa ponta, há uma nítida tendência para a liberalização, refletida nos números da própria OMC: quando, em 1948, foi criado o Gatt (Acordo Geral de Tarifas e Comércio), antecessor da OMC, 23 países estavam presentes. Na primeira conferência da OMC, no ano passado, em Cingapura, já eram 128 os países representados, mais 28 na lista de espera.
Mas, simultaneamente à adesão ao organismo multilateral por excelência, explodem os acordos regionais: já são 76 registrados na OMC -entre 1985 e 1990, eram cinco os registrados no Gatt. Daí até 1995, nasceram 33 novos acordos.
Nos quase 50 anos desde o lançamento do Gatt, o comércio mundial cresceu exponencialmente, passando de US$ 50 bilhões para US$ 6,1 trilhões. Parece um sinal claro de que o mundo caminha para passar uma motoniveladora nas barreiras comerciais. Mas quase dois terços (exatamente 61%) dessa pilha de dinheiro é comercializada dentro de blocos regionais.
Números que deixam claro que não está dita a última palavra na guerra entre os "clubes locais" e a "aldeia global".

Texto Anterior: GLOBALIZAÇÃO É SÓ O AUMENTO DA VELOCIDADE NA COMUNICAÇÃO ENTRE AS PESSOAS?; COMO A TECNOLOGIA INFLUIU NA GLOBALIZAÇÃO?; POR QUE A COMUNICAÇÃO É UM PROBLEMA NO 3º MUNDO?
Próximo Texto: 'Rodada Uruguai' ditou agenda do processo
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.