São Paulo, domingo, 2 de novembro de 1997
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O TROPICALISMO NO CÁRCERE

ARMANDO ANTENORE
DA REPORTAGEM LOCAL

Hoje pode soar ingênuo, quase improvável, mas na manhã do dia 27 de dezembro de 1968, quando agentes da Polícia Federal o levaram preso, Caetano Veloso não entendeu por quê.
Foi só durante o cárcere que encontrou a resposta, como demonstra em "Verdade Tropical".
E a resposta lhe chegou sob a roupagem de uma tese que, no final das contas (e sempre de acordo com a ótica muito pessoal de Caetano), tende a diferenciar e engrandecer o tropicalismo. Coloca-o um patamar acima das outras correntes culturais que sacudiram o Brasil dos anos 60.
Para o cantor, setores do governo militar nutriam um juízo específico (e sofisticado) do movimento que os baianos capitanearam. Tomavam-no como mais ameaçador à ordem instituída do que, por exemplo, as canções engajadas de Geraldo Vandré ou as peças politizadas de Gianfrancesco Guarnieri e Augusto Boal.
Cinco relatórios que a Folha descobriu nos arquivos do extinto Deops (Departamento Estadual de Ordem Política e Social), em São Paulo, apontam para um caminho diferente.
Permitem inferir que os militares não distinguiam o tropicalismo entre as tantas manifestações culturais ditas de oposição. Confundiam umas com outras e reuniam, todas, sob os rótulos de "subversivas" ou "esquerdistas".
A palavra "tropicalismo" não aparece em nenhum documento. Somente dois trazem a expressão "tropicália" ou "tropicalista".
Convém ressalvar que os cinco relatórios são apenas a parte visível de milhares de outros papéis que se perderam ou que a própria máquina da repressão destruiu -e que poderiam eventualmente corroborar a tese de Caetano.
Cheios de erros gramaticais e redigidos por informantes anônimos dos serviços de espionagem, os documentos localizados pela Folha ostentam as inscrições "reservado", "secreto" ou "confidencial".
Em 1992, durante uma entrevista para Jô Soares, o autor de "Verdade Tropical" mencionou o assunto pela primeira vez e abriu uma discussão sobre a figura do "dedo-duro" no meio artístico.
Agora, o livro -que não se preocupa em disfarçar o tom passional quando descreve as angústias do cárcere- volta a investir contra Juliano.
Narciso e as baratas
Duas semanas antes da prisão de Gil e Caetano, o presidente Costa e Silva colocou o Congresso em recesso e assinou o AI-5 (Ato Institucional nº 5), que cassava o mandato de parlamentares e inaugurava a etapa mais dura do governo militar.
Naquele período, os tropicalistas comandavam o "Divino Maravilhoso", programa semanal da TV Tupi que surpreendia pelo espírito anárquico.
Já na estréia, em 28 de outubro, Gil entoava "Bat Macumba" entre gargalhadas e rodopios.
Caetano -então cultivando uma cabeleira selvagem- se atirava, trôpego, de um lado para o outro e plantava bananeira diante de um cenário incomum: quatro painéis em alto relevo e cores berrantes, que exibiam seios, uma boca enorme e dentaduras.
Fechou o programa de maneira emblemática -com a música "É Proibido Proibir", que começou a cantar deitado no chão.
As semanas seguintes revelaram peripécias ainda maiores. Dentro de uma jaula, o elenco do "Divino Maravilhoso" chegou a simular um banquete de mendigos.
Cartas iradas do público mais conservador não paravam de pedir explicações à Tupi e de condenar as "ofensas" dos tropicalistas.
Nessa fase conturbada, a polícia bateu à porta do apartamento de Caetano, na avenida São Luís, centro de São Paulo.
"Nem eu nem Gil imaginávamos que seríamos presos. Não havia expectativa de que nada de grave pudesse acontecer conosco", escreve em "Verdade Tropical".
Toda a terceira parte do livro se dedica à anatomia do cárcere. São 62 páginas que levam o título de "Narciso em Férias".
Mesclam reminiscências dos quase dois meses que Caetano passou entre grades (sua libertação e a de Gil só ocorreram no dia 19 de fevereiro de 1969, uma Quarta-Feira de Cinzas) com a tentativa de desvendar a razão de tudo aquilo.
O leitor acompanha a busca como quem vê um filme labiríntico, protagonizado por um jovem bem distinto daquele que despejava irreverência sobre o palco.
Mais magro do que o habitual, confuso e frágil, o cantor caçava respostas não apenas nas raras conversas com militares, mas também em estranhos sinais metafísicos que, acreditava, poderia extrair de baratas e músicas do rádio.
Num trecho desconcertante, Caetano esmiúça tais rituais premonitórios -um sistema que usava menos para adivinhar as causas da prisão e mais para tentar antever quando o suplício terminaria.
"Se eu lançar o jato de Baygon nessa barata e ela conseguir fugir, haverá um atraso de três dias na ordem de liberação", raciocinava.
Foi assim, na solidão do cárcere, num ambiente que lhe estimulava tanto a superstição quanto o exercício da lógica, que Caetano concluiu por que o prenderam.
O compositor destrincha a tese contando, primeiro, que teve medo quando a polícia chegou a seu apartamento -mas "não era, de modo nenhum, um medo que correspondesse ao tamanho do que de fato" iria acontecer.
E explica: "Estávamos tão habituados a hostilizações por parte da esquerda, éramos tantas vezes acusados de alienados e americanizados, que, quando me vi diante daqueles policiais, imaginei que me estavam levando para uma conversa com algum oficial de São Paulo, o qual nos trataria como rapazes interessados apenas em divertir o público".
A realidade se mostrou menos otimista. Os dois baianos seguiram, juntos, para prisões cariocas e iniciaram um penoso caminho que culminaria com o exílio.
Certo dia, na cela da Vila Militar, em Deodoro, subúrbio do Rio, um sargento chamou Caetano e se pôs a atacar a peça "Roda Viva".
O espetáculo -escrito por Chico Buarque, que José Celso Martinez Corrêa montou em 1968 e cujo elenco sofreu agressões de militantes do CCC (Comando de Caça aos Comunistas)- lançava mão de uma linguagem cênica chocante. Ora sugeria ações canibais e expunha a nudez dos atores, ora estilizava símbolos religiosos.
"Em suma", resume Caetano, "era tudo com que nosso trabalho, meu e de Gil -dos tropicalistas-, se identificava."

Continua à pág. 5-10

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