São Paulo, domingo, 2 de novembro de 1997
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

O príncipe e João Gilberto

DO ENVIADO ESPECIAL

A pouco mais de 80 km de Salvador, a poeirenta e mal ventilada cidade de 56 mil habitantes já conheceu seus dias de glória. O declínio de Santo Amaro começou bem antes de Caetano deixar a cidade, aos 17 anos. Ela coincide com o fim da importância do principal ganha-pão da cidade: a cana-de-açúcar. No século passado, havia 129 engenhos nos arredores. Hoje, a cultura principal é o bambu, usado em fábricas de papel na região.
"Santo Amaro está muito decadente, mas já foi muito rica no século passado. Era lá que moravam os barões de cana-de-açúcar do recôncavo baiano", diz o artista plástico Emanoel Araújo, 57, outro santa-amarense ilustre.
Um lampejo desse declínio se reflete na vida cultural da cidade. Na década de 50, a cidade oferecia três cinemas. Época em que filmes franceses, italianos e até mexicanos, como lembra Caetano, eram exibidos regularmente. Foram neles que a juventude santa-amarense conheceu Fellini e Godard. Hoje, é impossível assistir até mesmo a um filme de Spielberg. Não sobrou um cinema na cidade.
Foi em um desses cinemas, o Cine Teatro Subaé -hoje demolido-, que Caetano subiu no palco pela primeira vez. "Ele tinha uns 10 anos. Fiz uma montagem de 'A Gata Borralheira'. Caetano era o príncipe e a Bethânia era a Gata Borralheira. No final, eles cantavam e dançavam juntos", conta a professora Zilda Paim.
Mas sua primeira apresentação pública, lembra Caetano em "Verdade Tropical", foi um pouco antes, aos 8 anos. "Se deu em um programa de calouros da Rádio Santo Amaro em que eu, ao ouvir a introdução feita pela orquestra da marchinha 'Toureiro de Madri', por mim mesmo escolhida, entrei cantando em outro tom, o que me desclassificou imediatamente."
Essa opção pela música não era algo tão definido na época. E a desafinação em "Toureiro de Madri" tem pouco a ver com isso.
Na infância e adolescência, Caetano era uma antena que recebia influências de diversas áreas da cultura e não aparentava maior inclinação para nenhuma delas. Poderia ter sido pintor, ator, diretor de cinema, jornalista ou até mesmo músico.
Caetano teve um pendor para o jornalismo. Ou para a crítica de cinema -gosto que o fez dirigir "O Cinema Falado" (1986).
No início da década de 60, quando já morava em Salvador, ele começou a colaborar em um recém-fundado jornal de Santo Amaro, o "Archote", criado por três professores locais.
Um deles, colega de sala de Caetano no ginásio Teodoro Sampaio, era quem levava a coluna do futuro cantor até o jornal na cidade natal.
"Ele sempre foi uma expressão cultural da terra", elogia o ex-deputado Genebaldo Corrêa, 56, o tal portador e que mais tarde ganharia notoriedade como um dos envolvidos no escândalo da CPI do Orçamento.
Mas o primeiro dote de Caetano a se revelar foi a pintura -ele fez as capas de alguns discos, como "Jóia". Na sala de aula, passava mais tempo rabiscando desenhos do que a encarar o quadro-negro.
Suas pinturas estão penduradas nas paredes dos familiares. Quase todos têm um quadro pintado por Caetano.
Fora do círculo familiar, a primeira vez em que Caetano mostrou seus quadros foi em uma exposição conjunta com um amigo no ginásio de Santo Amaro, em 59.
"Caetano fazia umas pinturas a óleo de paisagens de Santo Amaro. Depois, ele ficou impressionado com uma mostra de Manabu Mabe, que ele viu em Salvador, e passou a fazer algumas abstrações", lembra Emanoel Araújo, o amigo com quem Caetano dividiu a primeira exposição e que, hoje, dirige a Pinacoteca do Estado em São Paulo.
Para Emanoel, apesar do interesse de Caetano, o amigo dificilmente se tornaria um artista plástico. Mas não só por sua pintura ser um pouco acadêmica demais. "Sempre achei que ele seria músico. Ele sentava ao piano e tirava as coisas de ouvido. E gostava de tudo que era novo. Cultuávamos Maysa e ninguém sabia quem era."
Esse culto ao novo era um dos traços marcantes de Caetano. Uma característica que apenas se acentuou após sua estada no Rio, no início de adolescência, onde ele foi operar as amígdalas. Acabou ficando um ano na casa onde morava Mariinha, uma das primas que cuidou de Caetano na infância.
Minha Inha, como Caetano costuma chamá-la, tem hoje 86 anos e ainda mora na mesma casa -"no fim do mundo", como diz a irmã, Lindaura.
No Rio, esse fim do mundo é conhecido como Guadalupe, um subúrbio pobre na zona norte, a 35 km do centro do Rio e a alguns quilômetros a mais das praias da zona sul carioca.
Na infância em Santo Amaro, era Mariinha quem dava almoço para Caetano. Era ela também que o garoto acordava no meio da noite para brincar. No Rio, Mariinha costumava levar o garoto para os estúdios das rádios Nacional e Mayrink Veiga -que tinham uma influência no público semelhante à da Rede Globo atualmente. Como em Santo Amaro, Caetano passava horas ao pé do rádio ouvindo música.
"Ele era chato para comer, não gostava de se pentear e, para tomar banho, era uma corre-corre", lembra ela, que diz que uma das principais características de Caetano era ser "muito perguntador".
Com um ano de aula perdido, Caetano voltou a Santo Amaro -estava ainda mais interessado pelas novidades. Uma dessas novidades cultuadas por Caetano Veloso -a maior delas- era João Gilberto.
"Estávamos passando em frente ao bar do Bubu (que hoje é uma barbearia) quando o Caetano chamou nossa atenção para a música que estava tocando no bar. Era 'Chega de Saudade'. O Bubu tinha duas cópias do disco e não se desfazia de nenhuma delas", lembra Chico Motta, 57, um dos amigos que costumava ouvir João Gilberto com Caetano.
Como ele lembra em "Verdade Tropical", "na segunda metade dos anos 50, em Santo Amaro, eram muito poucos os meninos e meninas que se sentiam fascinados pela vida americana da era do rock'n'roll". Na Santo Amaro daquele tempo, o quente mesmo era a bossa nova.

Texto Anterior: Na Santo Amaro de Caetano
Próximo Texto: O TROPICALISMO NO CÁRCERE
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.