São Paulo, domingo, 2 de novembro de 1997
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A hidra não ouvia rock

MARIO CESAR CARVALHO
ENVIADO ESPECIAL A RECIFE

A hidra não tinha olhos para canções. A serpente de sete cabeças da mitologia grega, símbolo dos serviços de informação dos militares após 1964, estava preocupada com guerrilheiros em 1968, não com Caetano Veloso e Gilberto Gil, segundo o general Antonio Bandeira, uma das cabeças da serpente.
"Eles não tinham importância. A prisão foi uma operação absolutamente desnecessária", diz Bandeira, 81. Segundo ele, a ordem de prisão de Caetano e Gil não partiu da cúpula do Ministério do Exército. Foi uma decisão do 1º Exército e da Vila Militar, comandados à época pelo generais Syzeno Sarmento e João Dutra de Castilho.
"Caetano e Gil eram contestadores, atingiam os jovens, mas não tinham periculosidade, não tinham um passado comprometedor. O Caetano era como o Chico Buarque. Fazia músicas de protesto, muito criativas, eu até o admirava, mas não precisavam ser controlados", diz o coronel Geraldo Amaral Navarro, que também servia no gabinete do ministro do Exército, o general Lyra Tavares.
"O ministro ficava muito irritado quando os militares punham o dedo nessas besteiras", lembra o general Bandeira. O ministro Lyra Tavares vive no Rio, mas está doente e não se lembra desses episódios, segundo a família.
Militares têm sempre o álibi de alegar que não sabiam o que ocorria na sala ao lado, que puxaram o gatilho porque cumpriam ordens ou que tal arbitrariedade foi uma decisão isolada.
Só que no caso da prisão de Caetano e Gil a conjuntura histórica parece confirmar o que dizem. Também colocam em xeque a hipótese defendida por Caetano em "Verdade Tropical" de que os tropicalistas, pela profundidade com que chacoalhavam valores seculares, eram "os mais profundos inimigos do regime".
Os mais profundos inimigos do regime eram dois Carlos -os líderes guerrilheiros Marighela e Lamarca, diz o general Bandeira.
Em dezembro de 1968, quando Caetano e Gil foram presos, o grupo de Lamarca, a VPR (Vanguarda Popular Revolucionária), já acumulara uma série de ações espetaculares. Veja algumas delas:
22 de junho - Guerrilheiros da VPR roubam armas de um hospital militar em São Paulo;
26 de junho - Explodem um carro-bomba contra o Quartel General do 2º Exército em São Paulo, causando a morte de um soldado;
12 de outubro - Assassinam o capitão dos EUA Charles Chandler, acusado de ser agente da CIA (a central de inteligência norte-americana);
31 de dezembro - A VPR e a ALN (Aliança Libertadora Nacional) acumulam um saldo de dez assaltos, entre os quais seis contra bancos, dois contra pedreiras e dois contra carro-pagador. Tinham praticado, também, outros três atentados a bomba.
Enquanto Caetano e Gil estavam presos no Rio, o capitão Lamarca foge, no dia 26 de janeiro de 1969, do quartel de Quitaúna (Grande São Paylo) com 69 fuzis, dez metralhadoras e duas bazucas.
"Era com esse tipo de ação que os militares estavam preocupados", diz o coronel Navarro.
Na área musical, até havia um alvo preferencial dos militares, mas não eram os tropicalistas. Era Geraldo Vandré.
Em setembro de 1968, Vandré apresentou no Festival Internacional da Canção, no Rio, o que os militares mais temiam -uma canção que virasse bandeira. Foi o que aconteceu com "Caminhando - Pra não Dizer que não Falei de Flores". Caetano e Gil, segundo o coronel Navarro, não criaram bandeiras.
A bandeira de Vandré podia ser uma nulidade musical -um general chegou a dizer que sua "cadência é do tipo de Mao Tsé-Tung", seja lá o que isso queira dizer-, mas a letra atingiu os militares no que eles mais prezam: a honra e o espírito de corpo.
Os versos responsáveis pela façanha diziam: "Há soldados armados/ amados ou não/ quase todos perdidos/ de armas nas mãos/ nos quartéis lhes ensinam uma antiga lição/ de morrer pela pátria/ e viver sem razão".
A música foi proibida e começou a caçada a Vandré, que se esconderia no interior de São Paulo e depois fugiria para o Chile.
Se Caetano e Gil não preocupavam o alto escalão do Exército, por que, então, foram presos?
Porque não havia uma ação lógica e coordenada dos militares, segundo o general Bandeira. Apesar de o regime militar ser velho de quatro anos em 1968, persistia uma certa desarticulação. Qualquer comandante de quartel podia ordenar uma prisão -e parece ter sido esse o caso de Caetano e Gil.
Até Dom e Ravel, célebres propagandistas do "milagre brasileiro", foram presos em 1970 por criarem uma versão do Hino Nacional executada por banjos.
O general Bandeira conhece o espírito do regime à época porque trabalhou com duas das maiores obsessões dos militares: guerrilha e censura.
Combateu a guerrilha do Araguaia, onde foi acusado de torturar o atual deputado federal José Genoino, o que ele nega veementemente, e dirigiu a Polícia Federal no governo Médici. Na PF, ele cuidava da censura.
"Os cabeludos não incomodavam muito porque estavam isolados. A população estava com o regime, não com eles. Nossa preocupação era moral. Mulher pelada não podia", conta Bandeira.
Aí, os generais desciam do pedestal -o próprio Bandeira censurou os biquínis das chacretes do Chacrinha. Chacrinha, que era tudo, menos bobo, ficou amigo de Bandeira. "Alô, alô, general Bandeira! Aquele abraço", gritava em seus programas.

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