São Paulo, domingo, 2 de novembro de 1997
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Gil fala da guerra

ARMANDO ANTENORE
DA REPORTAGEM LOCAL

Gilberto Gil diz que chorou muito quando leu "Verdade Tropical". No último dia 16, o cantor deu uma entrevista à Folha, por telefone, em que relembrou os tempos do cárcere e comentou os cinco documentos secretos do Deops.

OS DOCUMENTOS - "Parecem-me mera encenação, pistas falsas, para dar um tratamento de normalidade à nossa prisão. Na verdade, como ressalta Caetano, a inteligência mais sofisticada do Exército entendia que significávamos um perigo maior que a esquerda formal. Não enxergavam em nós as manobras clássicas do marxismo, mas as táticas modernas da nova esquerda."

RANDAL JULIANO - "O episódio do radialista, aquelas declarações dele sobre o hino brasileiro e o espetáculo da boate Sucata são demasiadamente simplórios. Correspondem à visão de mundo clássica, à ótica da velha direita, que só dialoga com a velha esquerda. Nesse sentido, o papel de Randal Juliano em nossa prisão deve ser relativizado."

VICENTE CELESTINO - "Não imaginava que os militares investigassem Caetano desde 1965. Eu mesmo só senti a barra pesar em setembro de 1968, três meses antes da prisão.
Lembro-me bem de quando se abateu sobre mim o sentido da tragédia. Estávamos preparando um programa para a televisão, o 'Tropicália ou Panis et Circensis', que contaria com a participação de Emilinha Borba, Dalva de Oliveira, Vicente Celestino e outros cantores da velha guarda.
Ensaiávamos à tarde, na Som de Cristal, uma gafieira paulistana. Havia um momento -a hora da música 'Miserere Nóbis'- em que encenávamos a Santa Ceia. Eu interpretava um Cristo alegórico. Vicente se indispôs com a coisa. Considerou uma profanação intolerável e gritou lá do fundo: 'O Cristo negro ainda posso admitir, mas as bananas representando o pão sagrado, de jeito nenhum'.
Naquele mesma noite, ele morreu em um hotel de São Paulo. Fiquei impressionadíssimo. Respeitava muito o Vicente, embora não gostasse de como cantava. Quando menino, temia aquele vozeirão, aquele canto operístico. Por isso, diante da morte dele, tive o sentimento profundo de que estávamos todos envolvidos em uma dimensão trágica."

O TROPICALISMO - "Era um tormento. Eu não queria a guerra, sofria com o confronto, tinha medo mesmo. O Caetano, não. Ele é guerreiro. Mas eu... Eu sou diplomata, um conciliador por natureza. Meu prazer é conciliar. Sei que, muitas vezes, a guerra se torna necessária, só que não me agrada guerrear. É uma de minhas fraquezas.
Nunca troquei um tapa, entendeu? Na infância, fugia das brigas. Todo menino passa por uma fase em que a luta o atrai. Ele quer enfrentar, ele gosta de bater. Eu não. Desde os dois, três anos, rejeitava sistematicamente as ameaças de confronto. No colégio, na rua, em qualquer lugar. Você imagina isso, um sujeito que nunca trocou tapa? Pois é..."

"VERDADE TROPICAL" - "Chorei em certas passagens do livro. As lembranças precisas de Caetano, o testemunho profundo, a prosa envolvente, as descrições sensíveis que fez do poeta Augusto de Campos me emocionaram muito. Talvez porque o memorialismo não seja o meu forte. Com o tempo, minha memória ficou bastante atrapalhada, confusa. Claro que me recordo de coisas, mas não com tantos detalhes, tantas sutilezas."

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