São Paulo, domingo, 2 de novembro de 1997
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'Os bolcheviques eram pessoas más'

HAROLDO CERAVOLO SEREZA
DA REDAÇÃO

Em um cruzeiro pelo Pacífico, após passar pela Geórgia, uma das ex-repúblicas soviéticas, o historiador norte-americano Richard Pipes falou, por telefone, à Folha. Leia a seguir a entrevista com o autor de "História Concisa da Revolução Russa", que está sendo lançado pela Record.
(HCS)
*
Folha - O sr. foi assessor de Ronald Reagan, o presidente dos EUA que definiu a União Soviética como " Império do Mal". Você vê os bolcheviques como demônios?
Richard Pipes -Eu não acredito em demônios, mas em pessoas más. Eles eram pessoas más, corrompidas.
Folha - Qual o papel de Reagan na queda do império soviético?
Pipes - Ele foi responsável por grande parte da queda do comunismo. Tomou uma posição muito clara contra o comunismo, rearmou os EUA, apoiou o Solidariedade na Polônia e fez uma série de outras coisas que ajudaram a derrubar o império da URSS.
Folha - Para o sr., a chegada dos bolcheviques ao poder foi um golpe de Estado, não uma revolução.
Pipes - Eu descrevo o Outubro Vermelho como um golpe de Estado clássico, conduzido não pelos sovietes, mas pelos bolcheviques.
Folha - O sr. não acha que está desprezando uma situação de múltiplo poder que existia entre fevereiro e outubro de 1917?
Pipes - Eu não conheço revoltas de massas pedindo que os bolcheviques tomassem o poder. Eles diziam que queriam a paz, não o monopólio do poder. Se você olha o programa do partido, não há referência à monopolização do poder, o que impuseram quase que imediatamente após o levante.
Fevereiro foi uma revolução genuína, mas outubro foi muito bem planejado, na reunião de 10 de outubro. Isso é um golpe clássico.
Folha - O sr. diz que os comunistas não tinham apoio popular logo após chegarem ao poder.
Pipes - Já em 1918 eles perderam as eleições em sovietes de todo o país para os mencheviques e para os socialistas revolucionários. Eles viram esses resultados e se impuseram pelo terror. Seis meses depois, ninguém mais os queria.
Folha - O sr. acredita que um país pode ser democraticamente governado por sovietes?
Pipes - Não, é uma idéia anarquista. É preciso ter um governo. Os bolcheviques, quando perderam apoio popular, simplesmente ignoraram as eleições. Era só um slogan. Nunca seria possível governar o país por meio de sovietes.
Folha - Se os bolcheviques não tivessem sustentação popular, eles seriam capazes de manter o poder por mais de 70 anos?
Pipes - Ah, sim. Czares comandaram a Rússia por 700 anos. Eles não eram populares. Houve muitas revoltas na Rússia, nos séculos 17, 18 e eles continuaram no poder. Acho que eram mais populares que os bolcheviques. Com o controle da economia e com a máquina de terror político, pode-se governar indefinidamente. Se a União Soviética não tivesse ambições militares, nos anos 80, provavelmente continuaria existindo.
Folha - O fato de os comunistas terem mudado toda a estrutura produtiva na Rússia e, como consequência, as relações entre capital e trabalho no mundo não caracterizaria como revolução o que o sr. chama de golpe de Estado?
Pipes - Não, não. Estando no poder de um país tão grande como a Rússia, você pode ter grande influência no mundo, mesmo sem apoio popular. Se tivessem esse apoio, o Estado soviético não teria caído em dois ou três dias. Você imagina o governo dos EUA entrando em colapso em dois ou três dias? O governo nazista tinha mais apoio popular que o soviético.
Folha - Seu trabalho é criticado como parte de uma literatura da Guerra Fria.
Pipes - Meu livro é resultado de 10, 12 anos de pesquisa. Não respondo a pessoas que dizem isso. Teriam de argumentar com fatos.
Folha - Como o sr. vê a China, o último grande país governado por um partido único comunista?
Pipes - Eu vejo o comunismo se dissolvendo na China. Em busca do crescimento econômico, ela promove a empresa privada, e empresa privada e comunismo são incompatíveis. Você pode ter propriedade privada com capitalismo e democracia ou comunismo sem propriedade privada. A empresa privada acabará com o comunismo na China em alguns anos.
Folha - Para o sr., capitalismo e democracia estão sempre juntos?
Pipes - Não há país democrático sem propriedade privada.
Folha - Mas há casos de poder antidemocrático no livre mercado.
Pipes - Propriedade privada não é garantia de democracia, mas sem propriedade privada não há democracia. No momento em que o governo controla a riqueza de um país, tem o poder absoluto.
Folha - Se o sr. tivesse de escolher entre Kerenski, Lênin, Trótski e Stálin, em quem votaria?
Pipes -Certamente não em Stálin. Teria de ficar com Kerenski. Era um democrata, não um bom político, mas um democrata. Eu o conheci, era boa pessoa, mas incapaz de conduzir a Rússia de 1917.
Folha - O sr. acha que os socialistas revolucionários e os mencheviques seriam capazes de administrar a Rússia de então?
Pipes - Não. Não tinham experiência política e não eram capazes de gerir o país. Eram inteligentes, bons oradores e escritores, mas não administradores. As saídas eram uma ditadura de esquerda ou de direita. Mas não a democracia.
Folha - Quando diz que a política bolchevique era apenas a da violência, o sr. não subestima a posição contra a guerra e o slogan "Paz, pão e terra"?
Pipes - Esse era apenas um slogan, não o que realmente queriam. Publicamente, falavam em paz, mas internamente discutiam a guerra civil e a estatização da terra. Quando Hitler chegou ao poder, também não falava em guerra.
Folha - E se o sr. tivesse de escolher entre Lênin, Mussolini e Hitler, com quem ficaria?
Pipes - Você sempre me deixa opções difíceis, mas eu certamente escolheria Mussolini. Poucas pessoas perderam a vida durante o regime fascista. Estive na Itália por seis meses durante a Segunda Guerra Mundial. Era um regime muito diferente do da Alemanha.

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