São Paulo, domingo, 2 de novembro de 1997
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Seminário discute 80 anos da Revolução

VICTOR CHEINIS

No próprio partido bolchevique nos anos 20, quando ainda existia uma relativa liberdade de discussão, seus membros, que eram pessoas relativamente cultas, se comparadas com os quadros partidários das décadas seguintes, se detiveram a traçar repetidos paralelos com o fenômeno da Revolução Francesa. Nas disputas e nas acusações surgia frequentemente a imagem do "termidor" -a derrubada da ditadura jacobina. Um dos primeiros que começou a falar da "degeneração termidoriana" que estaria dirigindo o núcleo do partido, com Stálin e Bukhárin à cabeça e, em seguida, do "perigo bonapartista", foi Trótski (1). Entretanto a comparação que ele fez era demasiado literal e, por isso, superficial. "A essência do termidor constituiu no fato de que" -escreveu Trótski- "ele instituiu a liberdade de comércio... O regime do termidor tinha como tarefa a criação das condições indispensáveis para o desenvolvimento da nova sociedade, ou seja, da sociedade burguesa" (2).
Trótski, bem antes de Djilas, já havia notado o incremento e o papel autônomo da burocracia e a deformação burocrática do regime, do qual ele próprio tinha sido um ativo fundador: "Quando as massas deixam a arena social e se retiram para seus bairros, recuam para as suas casas, perplexas, desencantadas, cansadas, aí é que se configura o vazio. E esse vazio é preenchido por um novo aparato burocrático. Eis porque na época da reação vitoriosa, a máquina policial-militar desempenha um papel mais considerável do que no velho regime" (3). Contudo até uma explicação completa do papel autônomo do "aparato", até uma compreensão total da "nova classe" que construiu um regime anticapitalista, ao longo de uma extensa perspectiva histórica, Trótski não conseguiu chegar: "O exército do termidor soviético se recrutava entre os remanescentes dos velhos partidos dominantes anteriores e entre seus representantes ideológicos... Todo este exército enorme e mesclado constituiu suporte natural do termidor... Os representantes sobreviventes da alta burguesia e da aristocracia fundiária, enquanto estiveram no país e no aparato do Estado, agarraram-se naturalmente ao camponês como a uma âncora de salvação. Eles não podiam esperar qualquer espécie de êxito e compreenderam perfeitamente que deveriam passar por um período de defesa do campesinato" (4).
Assim como o termidor da França não implicou nenhuma restauração feudal (5), também o da Rússia não se tornou uma restauração burguesa, como havia previsto Trótski e seus seguidores, cujo pensamento estava encerrado na estreita moldura da dicotomia capitalismo/socialismo. O regime pós-outubro, durante 10 a 20 anos, passou por uma "termidorização" e uma "bonapartização" próprias, afastando-se cada vez mais da utopia socialista; mas esses processos nada tiveram em comum com a própria "degeneração" burguesa. A "defesa" do camponês, que em Bukhárin estava ligada a uma pesquisa teórica séria, a um esforço para harmonizar as relações de classes na sociedade tumultuada e à sua tímida tentativa de introduzir na concepção dominante o elemento ético (6), para Stálin, que tinha em mente atingir o poder ilimitado, não passou de um procedimento tático conjuntural. A devastação do campesinato russo e a aniquilação física de seus membros socialmente mais válidos e mais ativos, que ocorreram nos fins da década de 20 e começo da de 30, não podem nem sequer ser comparadas às mais negras suposições da oposição trotskista.
"... As idéias do primeiro período da revolução perderam insensivelmente a sua eficácia na consciência daquele círculo do partido que exercia imediatamente o poder. No próprio país desenvolveram-se processos que, no seu conjunto, são de reação, desenvolvimento que alcançou mais ou menos também a classe operária e, precisamente, os elementos operários do partido", escreveu Trótski em 1930 (7). Esta afirmação não é exata. Se formos julgar a ditadura jacobina (do Reinado do Terror de Robespierre) não pela constituição de 1793, "a mais democrática de todas as constituições da França" -a qual nem sequer chegou a ser posta em prática e cuja aplicação foi oficialmente adiada "sine die" já dois meses após sua sanção (8)-, mas sim pelo "Terror", pelas leis do preço máximo como arma na luta contra a carestia e por decretos "que prometiam aos pobres sans-culottes um farto butim na forma dos bens dos suspeitos e reconhecidos inimigos da revolução" (9), então o termidor (junho de 1794), à diferença da Restauração dos Bourbons em 1814-5, no plano histórico representou não uma reação, mas uma volta da revolução burguesa àquelas tarefas que ela, objetivamente, tinha que resolver.
Com a revolução de Outubro e o termidor stalinista, a situação é mais complexa. Visto que a Revolução Russa de 1917 deixou logo de se manter na direção do antimonarquismo, antifeudalismo e das representações democráticas que haviam amadurecido na Rússia, acompanhando o background do desenvolvimento dos países mais desenvolvidos, ela naturalmente representou se não um movimento inverso, de qualquer modo sempre um desvio lateral.
Porém, em sua lógica própria, o termidor russo representou o desenvolvimento plenamente regular e previsível (embora não sem alternativas) do Outubro russo, visto que realizou suas tarefas sem apelar para ilusões românticas e criou um mecanismo bastante eficaz para seu tempo e condições para, se não anular, com certeza diminuir o atraso técnico-econômico, o hiato em relação aos países desenvolvidos e fazer voltar a Rússia ao papel de potência mundial.

Notas:
1. I. Deutscher. "Trótski no Exílio", Moscou, 1991, pág. 66;
2. L. Trótski, "Stálin", Chalidze Publications, 1982, vol. 2, pág. 232;
3. Idem, pág. 234;
4. Idem, págs. 234-5;
5. Durante a Revolução Francesa, chamou-se "Reação de Termidor" (ou simplesmente "Termidor") a revolta iniciada em 9 de termidor, ano II (27 de julho de 1974), que resultou na queda de Robespierre e no fim do fervor revolucionário e do Reinado do Terror na França. O golpe apresentou, basicamente, o restabelecimento dos direitos da Convenção Nacional contra o Comitê de Segurança Pública, e da nação contra a Comuna de Paris. O Diretório, que se implantou em seguida, não era nem autoritário;
6. Vide S. Cohen, "Bukhárin - Biografia Política", Moscou, 1988, págs. 208-9;
7. L. Trótski, "Minha Vida", Irkutsk, 1991, págs. 477-8;
8. A. Olar, "História Política da Revolução Francesa", Moscou, 1938, págs. 373-82;
9. A. Matiez, "A Luta contra o Alto Custo de Vida e o Movimento Social na Época do Terror", Moscou/Leningrado, 1928, pág. 458.

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