São Paulo, domingo, 2 de novembro de 1997
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'O espaço deve ser útil para a humanidade'

RICARDO BONALUME NETO

RICARDO BONALUME NETO; MAURÍCIO TUFFANI
ESPECIAL PARA A FOLHA

O cosmonauta russo Aleksander Serebrov propõe a exploração do cosmos voltada para os problemas da terra

MAURÍCIO TUFFANI
A exploração do espaço deve servir para fins práticos da humanidade, e não para mera propaganda política. Mais importante do que fazer um ser humano andar na superfície de Marte seria ajudar a resolver os problemas energéticos da população terrestre.
Quem diz isso não é um sujeito com aquela clássica opinião estereotipada de que só se deve construir foguetes e satélites "depois de os problemas terrestres serem resolvidos".
Trata-se, ao contrário, de um cosmonauta que já esteve quatro vezes em órbita do planeta, onde passou mais de um ano. O russo Aleksander Serebrov também assessora o governo de Boris Ieltsin em temas da área. E suas opiniões são incisivas, como revelou em entrevista exclusiva à Folha.
É fácil de entender o porquê. Ele nasceu em 15 de fevereiro de 1944, mas comemora quatro aniversários todo ano. Além do nascimento, são mais três datas relacionadas a sustos em que ele quase morreu. Certa vez, ele quase se perdeu ao fazer um passeio espacial, o que vem a demonstrar que a conquista do espaço é mais arriscada do que parece. (Ele, aliás, não gosta do termo "conquista". "Prefiro cooperação", diz o cosmonauta.)
Serebrov afirma que a captação de energia "limpa" em órbita, como a solar, poderá eventualmente ajudar a humanidade a se livrar de um fantasma -o efeito estufa de ação humana, o aquecimento gradual do planeta provocado pelo aprisionamento do calor por gases emitidos pelas atividades agrícolas, industriais e de transporte.
Por esse e outros motivos, é mais importante, para Serebrov, ter estações espaciais em órbita da Terra, do que cosmonautas russos ou astronautas americanos a caminho de pisar o solo vermelho de ferrugem de Marte.
"Eu teria pedido mais dinheiro para os americanos poderem usar nossa estação espacial Mir. Cem milhões de dólares por ano é muito pouco", disse ele.
E quando é provocado a respeito do estado hoje decrépito da Mir, e o que isso teria a dizer sobre o potencial da tecnologia russa, suas respostas também são imediatas.
"Quer um exemplo? Nós vendemos recentemente aos EUA um lote de motores do foguete N-1, com 30 anos de idade. Isso é tecnologia ruim?" Quanto à Mir, para ele, os problemas foram de mal gerenciamento do programa espacial russo. "Se eu estivesse lá, isso não estaria acontecendo."
Pode parecer uma bravata, mas não é. Serebrov teve papel importante na definição dos parâmetros pelos quais a pesquisa científica a bordo da estação é conduzida.
A principal vantagem de uma estação espacial, afirma ele, é o aproveitamento da microgravidade, a aparente ausência de peso causada pela grande distância da Terra. Esse ambiente favorece o crescimento de cristais de melhor qualidade, o que facilita a identificação de sua estrutura molecular, beneficiando pesquisas como a de fármacos.
Serebrov, engenheiro, físico, -cosmonauta número 51 de uma linhagem começada em 1961 com Iuri Gagárin, o primeiro homem no espaço-, pôde dar valiosas informações para o programa espacial da antiga União Soviética, e hoje da Rússia. Gagárin, lembra ele, era um homem extremamente honesto e verdadeiro, mas era um "bon vivant" -tanto que certa vez quase atropelou seu colega número 51 dirigindo um carro esporte em alta velocidade.
Serebrov veio ao Brasil para o Primeiro Seminário Brasileiro em Educação Espacial, realizado pelo Instituto de Atividades Espaciais, em São José dos Campos (SP).
Perguntado se havia sexo a bordo da Mir, quando mulheres passaram pela estação, ele foi discreto. "A Mir é um local de trabalho. Você faz sexo no seu local de trabalho?", devolveu a pergunta. Nas estações antárticas, diz ele, não funcionou ter as mulheres dos pesquisadores por lá. "Havia brigas demais entre todo mundo."
Indagado se ele e seus colegas tomavam vodca na Mir, ele foi curto e grosso: "Sim, porque lá existem pessoas de carne e osso".
Na Mir, o dia começa às 8h, hora de Moscou. O tempo "livre" começa às 23h. Corta-se a ligação com a Terra. Ele às vezes ficava acordado até as 3h, 4h. Para se divertir, fazia experimentos científicos na área de seu interesse, lia livros de história, olhava para a grande variedade de objetos na superfície terrestre. "Pude ver com o telescópio a árvore de natal em Manhattan."
Olhando para a Terra ele teve surpresas, como a de ver áreas irrigadas perfeitamente circulares na Arábia Saudita. Ou partes da fronteira israelense -verde e irrigada do lado de Israel, cinza e desértica do outro lado. Serebrov também pôde achar, pelos seus rastros, dois submarinos nucleares americanos escoltando o couraçado Iowa com o então presidente americano, George Bush, a bordo.
Foi muito difícil saber da morte de um amigo durante os conflitos políticos na Rússia em 1993, enquanto ele estava no espaço. Ao relembrar o fato, o cosmonauta se emocionou até as lágrimas.
Certa vez um lixo espacial do tamanho de uma televisão passou a cinco metros da nave, enquanto ele olhava para fora e se exercitava na bicicleta ergométrica. É uma experiência que ele não gostaria de repetir, mas que lembra com certa saudade. Afinal, muito poucos seres humanos podem dizer que já tiveram satélites como vizinhos.

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