São Paulo, domingo, 2 de novembro de 1997
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Derrota eleitoral de Menem estremece AL

JORGE CASTAÑEDA
ESPECIAL PARA A FOLHA

O abalo sofrido pelos mercados latino-americanos na semana passada, juntamente com os do resto do mundo, deixou parcialmente à sombra um estremecimento político análogo e simultâneo: a vitória da aliança oposicionista argentina nas eleições legislativas do domingo, 26 de outubro, e a derrota avassaladora do menemismo no país.
Por um conjunto de razões, os resultados da votação na Argentina podem significar o fim de uma era -e o início de outra- em toda a América Latina.
Em primeiro lugar, o fato de a coalizão formada pela União Cívica Radical e a Frepaso, encabeçada por Graciela Fernández Meijide e "Chacho" Alvarez, haver conseguido uma vantagem de quase dez pontos em relação ao Partido Justicialista, tanto em nível nacional quanto na Província de Buenos Aires, bastião do peronismo, deve ser situado num contexto latino-americano mais amplo.
Pela terceira vez neste ano uma força de oposição de esquerda, contrária ao ambiente neoliberal reinante, quando não à própria ideologia econômica dominante, conquista um triunfo inesperado e emblemático.
Em El Salvador a FMLN obtém uma vitória arrasadora nas eleições municipais e empata com a direita no parlamento; no México, Cuahtémoc Cárdenas é eleito prefeito da Cidade do México e o PRD aparece como o segundo partido na Câmara dos Deputados; agora a aliança argentina supera o partido de Carlos Menem e se posiciona em primeiro lugar em todas as sondagens e prognósticos para a eleição presidencial do final do século.
Na esteira das vitórias do trabalhismo inglês e do socialismo francês, é notável a mudança de clima, de ar ou de qualquer outra metáfora que se queira utilizar.
Isso não significa que, programática ou substantivamente, as vitórias eleitorais oposicionistas resultem de maneira imediata numa política alternativa, numa mudança econômica ou social de fundo. Como já ficou mais do que comprovado, existe uma relação inversamente proporcional entre o radicalismo de posturas e as possibilidades de vitória.
Isso pôde ser visto com toda clareza na Argentina: conforme a aliança de centro-esquerda se aproximava da vitória -e de uma participação no poder-, seu discurso era moderado e suas posições eram suavizadas. Suas diferenças com a estabilidade menemista desfaziam-se. Ou o inverso: à medida em que ganhavam terreno a moderação e a cautela, aumentavam as chances de vitória.
Nada mais normal e previsível; as eleições costumam ser ganhas no centro, e os partidos políticos costumam desejar a vitória, não a derrota. Já no governo -não será o caso dos argentinos, por enquanto-, a busca do equilíbrio adequado entre mudança e sensatez, entre viabilidade e diferença, entre radicalismo e prudência, se torna mais complexa, e às vezes acaba sendo mais fácil encontrar o ponto intermediário quando se teve consciência do problema desde antes.
Mas o deslize em direção ao centro é uma característica inevitável de qualquer tentativa da esquerda de chegar ao poder por via eleitoral.
Essa constante não deve obscurecer o aspecto essencial do que aconteceu na Argentina, ou seja, que, aos olhos dos eleitores, as virtudes do esquema predominante deixaram de ser superiores às possíveis vantagens do outro caminho, e que os perigos de uma alternativa já não são suficientes para justificar que se tolere o status quo com resignação.
Os eleitores argentinos, e em especial aqueles de origem popular e os da Província de Buenos Aires, já não se dobram diante da chantagem da estabilidade: Menem ou o retorno ao caos inflacionário. Isso se deve, em parte, ao fato de que os riscos reais do caos inflacionário já diminuíram: a esquerda aprendeu a lição. Mas também se deve ao fato de que o preço do chamado neoliberalismo já se manifestou de modo mais nítido -desemprego, corrupção, salários estagnados, cortes nas despesas com educação, saúde, habitação, etc, e empobrecimento da grande classe média argentina.
Até muito pouco tempo atrás, os eleitorados latino-americanos claramente preferiam os custos do fundamentalismo de mercado às ilusões de uma esquerda desacreditada e desmoralizada. Até recentemente, duvidavam dos possíveis méritos de trocar de cavalo na metade do caminho. Mas isso mudou, pelo menos em três eleições seguidas e em três países diferentes, onde o que estava em jogo não era o poder presidencial. A tese do caminho único foi ferida, talvez mortalmente.
Uma terceira razão que justifica que se atribua uma importância histórica às eleições argentinas consiste no prêmio à tática de unidade que o eleitorado resolveu conceder à coalizão oposicionista.
A lição a ser tirada disso por outros países é evidente: a unidade é bem vista pelos eleitores, temida pelos adversários e preferível para os rivais.
Nos países onde já existe uma aliança entre o centro e a esquerda, como no Chile, é indispensável conservá-la, mesmo se as posições relativas de cada bloco mudarem em seu interior. Naqueles onde ainda está por ser construída uma grande coalizão contrária ao domínio neoliberal -México, Brasil- é preciso avançar com os aliados disponíveis, que nem sempre são os ideais.
A vitória argentina é um estímulo. O incentivo principal para a unidade consiste nas possibilidades de vitória: nada como a vitória para superar obstáculos, ódios e rancores. Talvez essa tenha sido a maior contribuição positiva da vitória argentina para a esquerda latino-americana: provar que vencer é possível, sim, e que vale a pena.

Tradução de Clara Allain

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