São Paulo, domingo, 2 de novembro de 1997
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Revolucionários e utopias estão em baixa

FERNANDO GABEIRA
COLUNISTA DA FOLHA

Revolução é uma mudança profunda, uma volta em torno de si mesmo. Para que ela exista, de um modo geral, é preciso que exista também uma utopia, um script para a história, uma visão geral do sistema indicando para onde sopram os ventos. As utopias estão em baixa e com elas a própria figura do revolucionário.
Os populistas russos do século 19 foram os precursores de Lênin, Trotsky e Stálin. A expressão no Brasil passa a idéia de demagogos vulgares. No entanto, os populistas na Rússia eram antes de tudo defensores da utopia.
Um deles, Tkacev, afirmava claramente que os realistas, fixando limites do desenvolvimento lógico, eram incapazes de ver as coisas como elas são, uma espécie de idiotas da objetividade, usando a expressão de Nélson Rodrigues.
Os populistas não só defendiam a utopia mas, considerando o atraso na formação da classe operária russa, reservavam para os intelectuais o papel de única vanguarda capaz de impulsionar as transformações. Teorizavam, portanto, a necessidade da utopia e do revolucionário profissional.
A passagem dos revolucionários românticos aos eficazes e supostamente científicos bolcheviques representou um salto. Mas foram exatamente esses últimos, ao conquistarem o poder, que aplicaram um golpe quase letal na utopia.
Antes da Revolução Russa, no princípio do século, as aspirações utópicas ainda guardavam uma auréola de inocência. Foram os chamados revolucionários científicos que realmente fizeram a revolução e colocaram na imagem da utopia enormes manchas de sangue da qual, dificilmente, ela se livrará no futuro.
Não que seja impossível surgir uma utopia. Mas a verdade é que todo sistema de explicação global, toda tentativa de descrever a história como se ela tivesse um sentido em si, um rumo certo, terá necessariamente de explicar também as mortes produzidas no período stalinista, o vandalismo assassino da Revolução Cultural chinesa.
O revolucionário e uma teoria revolucionária só seriam aceitos hoje com a certeza de que a utopia e banhos de sangue em seu nome não são fenômenos indissolúveis.
Se as utopias entram em pane e os revolucionários não circulam com seus longos cachecóis nos bares de Paris, nem com suas boinas verdes nas montanhas latino-americanas, isso significa que só restam o cinismo e a passividade diante do triunfo capitalista?
Muitos que se consideravam revolucionários livraram-se do rótulo e, no lugar de uma visão histórica prescrita, inexorável, trabalham com alguns princípios: justiça social, democracia como visão estratégica, direitos humanos, consciência ambiental.
Ao longo da segunda parte do século 20, quando os ideais revolucionários começam a declinar, o capitalismo abriu a possibilidade de inúmeras lutas pelas liberdades individuais, quase todas questionando os limites de sua tolerância.
O feminismo, a luta dos negros, das minorias sexuais, das nações indígenas, para mencionar algumas, trouxeram novo alento ao movimento social, sem, no entanto, questionar o âmago do sistema, sem levá-lo à necessidade de dar uma volta em torno de si mesmo.
Como explicar os grandes debates e excitação editorial em torno dos 30 anos da morte de "Che" Guevara, se a figura do revolucionário não tem mais o apelo romântico do passado?
Guevara não representa mais o perigo de outrora e, além disso, as comemorações se sucedem num ritmo tão alucinante que, na semana que vem, estaremos celebrando outro nome qualquer.
Mas a própria mística de Guevara mostra que o que há de bom na humanidade jamais desapareceu. Médicos como ele se lançam nos confins da África, Ásia e América Latina. Partilhando do desconforto da pobreza, salvam vidas, enfrentam perigos, dedicam-se a um mundo melhor. Apenas confirmam o argumento inicial: acabaram as utopias, mas não acabaram as boas intenções.

LEIA MAIS sobre a Revolução Russa nas págs. 5-12 e 5-13

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