São Paulo, domingo, 2 de novembro de 1997
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Revisão constitucional? Constituinte?

MICHEL TEMER

Tem-se proposto, devido à preocupação com as questões nacionais, uma nova revisão constitucional, ou uma nova Constituinte, pela via facilitada do quórum de maioria absoluta e em sessão unicameral.
O propósito é o de fazer modificação constitucional, atingindo objetivos desenhados pelo constituinte de 1988 quando a previu expressamente no art. 3º das Disposições Transitórias, mas não alcançados quando o Congresso resolveu exercitar essa competência. A idéia já foi objeto de cogitação quando tomou posse o presidente Fernando Henrique Cardoso.
Àquela época, duas questões se colocavam: a) se era possível nova revisão; b) se era possível convocar assembléia revisora exclusiva. Propõe-se que se faça a autorização da assembléia revisora ou constituinte por emenda constitucional, submetida ou não (dependendo das propostas que tramitam no Congresso) à consulta popular. Examinarei a questão apenas sob o foco jurídico. Não discutirei, neste artigo, a validade política da sugestão.
Começo dizendo o óbvio: adotamos a teoria clássica da tripartição do poder. Embora o poder seja uno, órgãos distintos o exercem mediante diferentes atividades. Legislativo, Executivo e Judiciário são órgãos do poder. E este é tripartido como consequência da regra que funda o Estado: todo poder emana do povo e em seu nome é exercido.
Nem sempre, aliás, foi assim. Tempos houve em que o poder emanava do soberano. Era a época do Estado absoluto, que se contrapõe ao atual, dito Estado de Direito porque ancorado na idéia, já expressada, segundo a qual o povo é o titular do poder e representantes seus exercem-no (no Legislativo, no Executivo e no Judiciário).
Percebe-se facilmente que a regra estipuladora do exercício do poder é uma das bases do Estado. É princípio, norma fundamental -tipicamente constitucional, sem a qual o Estado não pode existir. É, dizem os doutrinadores, preceito materialmente constitucional.
Essa importância, em certos sistemas, é levada às últimas consequências. É o caso brasileiro. A Carta de 1988 tornou imodificável a regra sobre a separação dos Poderes. Costuma-se dizer que é uma das cláusulas "pétreas" da Constituição. Ou seja, imutável mesmo pelo maior dos instrumentos do processo legislativo: a emenda à Constituição.
Assim, embora a Constituição possa ser mudada por processo especial e qualificado, difícil mesmo, certas matérias são perenizadas pelo constituinte originário. É o que está no art. 60, parágrafo 4º da Constituição. Separação dos Poderes é norma "pétrea".
E de que separação está falando o aludido preceito constitucional? Não é, por evidente, a do sistema argentino ou norte-americano. É a separação posta pelo constituinte de 1988. E aí previu-se apenas a existência de três órgãos do poder, nas Disposições Permanentes.
Abriu-se exceção, nas Disposições Transitórias, para a existência de um quarto Poder, o revisor, no já mencionado artigo 3º. Era, de fato, outro Poder: unicameral, para o exercício de competência determinada e com quórum de aprovação facilitado. Não era o Legislativo, nem o Executivo ou o Judiciário. Era a assembléia revisora.
Essa competência já foi exercitada. Fez-se, juridicamente, a revisão constitucional ali prevista. Perdeu eficácia, portanto, aquela regra transitória.
Aliás, transitório é aquilo que fenece com a ocorrência do evento. Juridicamente, é disposição transitória aquela que perde eficácia, desaparece no mundo jurídico quando se exerce a competência nela estabelecida. Assim, vigoram hoje as Disposições Permanentes, que autorizam o exercício de competências pelos Poderes constitucionalmente previstos e "petrificados".
Aqui a pergunta: o que é essa competência trazida pelas novas propostas? É a criação de um quarto Poder, que encontra, a meu ver, empecilho absoluto no art. 60, parágrafo 4º da Carta, já que sua criação importa violação à separação dos Poderes tal como estabelecida e "petrificada" no texto magno.
Juridicamente, é inviável. É ato político que rompe com a ordem jurídica, deliberadamente. É revolucionário, no sentido de transformador. Derruba a vontade constituinte, manifestada por meio da Constituição de 1988, para que outra se manifeste.
Por isso, o instrumento que o veicular não é ato derivado da Constituição, mas originário, inaugural, autônomo. Não é, pois, emenda à Constituição.
Pode-se até denominá-lo assim. Dar-lhe tramitação em que haja -só a esse pretexto- manifestação especial do Congresso. Depois, inafastavelmente, haveria de se procurar o respaldo popular, por meio de plebiscito. O povo, fonte do poder, autorizaria a nova Constituinte. Poderia até fazê-lo nas próximas eleições.
Caso não se dê aos projetos que tramitam pelo Congresso Nacional essa roupagem -exclusivamente política, não jurídica-, possivelmente o Supremo Tribunal Federal, como guardião da Constituição, poderá declarar a sua inconstitucionalidade.
Em síntese: se as forças políticas majoritárias do país, com o apoio popular, expresso em plebiscito, resolverem alterar a Constituição, contra seus próprios dizeres, que o façam por instrumento que se legitime por si mesmo, independentemente de autorização constitucional. Em outros dizeres, não devemos mascarar situações. Expressemos a realidade.

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