São Paulo, domingo, 2 de novembro de 1997
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Sociedade dos poetas novos

ALEXANDRA OZORIO DE ALMEIDA
"TORNAR-SE UM POETA É DOENÇA INCURÁVEL E CONTAGIOSA"

Miguel de Cervantes (1547-1616), autor de "Dom Quixote"
O Brasil assiste um novo boom em uma área que andava bastante à sombra: a poesia. O ressurgimento dos saraus, ateliês de poesia, editoras e revistas voltadas para o assunto demonstra que os versos voltam a ocupar uma posição de destaque na vida artística nacional.
Quando a maioria dos jovens está preocupada em assegurar bons empregos ou se atualizar em informática, alguns "ETs" estão dispostos a viver com pouco, trabalhando o suficiente apenas para garantir a sua principal paixão: os versos.
"Em meados dos anos 90, assim como ocorreu nos anos 70, houve um boom da poesia. Acredito que isso se deve a um forte grupo de poetas mais velhos, que acabam mostrando aos outros que poesia é algo que eles podem fazer", afirma o poeta e juiz Régis Bonvicino, 42, que participou como crítico dos três primeiros encontros do Ateliê de Novos Poetas, organizados pela Livraria Cultura (SP) desde agosto.
A editora Sette Letras, do Rio de Janeiro, dedica 80% dos títulos publicados à poesia. Em dois anos, recebeu cerca de 500 trabalhos em verso de novos autores em busca de publicação. Esses jovens foram levados à poesia por brincadeiras de colégio, uma longa viagem e até um tiro.
Francisco Bosco, filho do compositor e intérprete João Bosco, se aproximou dos livros devido ao "claustro obrigatório" no qual ficou depois de ter sido baleado em uma favela de Niterói, há três anos. "Estava voltando de uma festa, de madrugada, com uns dez amigos, quando nos perdemos em uma favela", conta. "Já tínhamos tomado umas e outras, e havia duas meninas passando. Resolvemos descer do carro para mexer com elas, na hora da confusão, sobrou para mim."
Francisco se define, até o acidente, como "aquele adolescente bem bagunceiro". "Tive minhas experiências com drogas, mas sempre fui de uma índole mais reflexiva, lia algo aqui e ali. O tiro foi o divisor de águas que deflagrou esse processo de escrita e leitura", diz. Ele não tinha escrito nada até então, mas considera que o processo pelo qual passou foi tão intenso que explicaria já ter dois livros publicados -"Florestado" e "Atrás da Porta"- e um terceiro a caminho, aos 21 anos.
Uma viagem de dez meses pelos EUA, México e Europa resultou no livro de estréia de Felipe Nepomuceno, 22, filho do jornalista e escritor Eric Nepomuceno. Felipe estava terminando sua viagem na casa de amigos em Madri, quando sentiu necessidade de "colocar no papel parte das suas memórias" -aos 21 anos.
Ele escreveu, em menos de duas semanas, 80 textos -cada um referente a uma das cidades pela qual passou. "O Marciano" é composto por uma seleção de 44 dessas 'anotações' -a forma como define seus poemas. "Trato minhas lembranças como se fossem cidades. Tranquei-me no apartamento com uma máquina de escrever e todos os dias mandava os poemas para os meus pais em forma de carta", diz.
Rótulo
Em matéria de inspiração, os novos poetas têm poucas coisas em comum: uns preferem os brasileiros, sendo Carlos Drummond de Andrade e João Cabral de Melo Neto os mais citados, outros se sentem mais influenciados por estrangeiros, como Elizabeth Bishop e Arthur Rimbaud. Em uma coisa quase todos concordam: assim como João Cabral, que acha o termo "efeminado", eles não gostam de ser chamados de poetas.
A denominação costuma ter duas interpretações, radicalmente opostas: ou se lembra de alguém do porte de Drummond, ou dos inoportunos integrantes da geração mimeógrafo, que vendem "poesia" pelos bares, e nenhuma das duas agrada.
"Essa coisa de vir um cara na mesa do bar e recitar um poema cria a imagem do poeta como o cara meio mala, meio narciso. Eu mesmo tenho um pouco desse preconceito. Se alguém chega e diz: 'Vamos para tal lugar encontrar alguns amigos meus, poetas', tenho vontade de sair correndo", diz Pedro Amaral, 22, que publicou em 95 seu livro de estréia, 'Vívido'.
Outros já acham o título muito pretensioso. "Evito dizer que sou poeta. Essa palavra tem uma carga, e o meu ombro é fraquinho para carregá-la. Poetas são Cabral, Drummond", diz o jornalista -e poeta- Heitor Ferraz, 32, autor de "Resumo do Dia", de 1996.
"Não me considero poeta, não tenho essa pretensão. Por isso é que chamo o que escrevo de 'anotações' ou 'textos'. Fico orgulhoso quando chamam meus textos de poemas", afirma Felipe.
Outro problema é que as pessoas ainda não esqueceram a imagem do poeta romântico, melancólico e boêmio que morria, antes dos 30, apaixonado e com tuberculose. "As pessoas criam máscaras sociais e é difícil se livrar delas. Você tem de ser triste, sofredor, excêntrico, odiar o Sol e gostar da chuva. Outro dia, saí para jantar, e uma amiga comentou depois que eu era engraçado, tinha feito piadas. Ela não sabia que eu era 'assim"', reclama Heitor.
Pedro, por exemplo, foge bastante do perfil de "poeta solitário". Apesar de ter o tipo físico que normalmente se associa aos poetas -franzino e de óculos-, adora animar as festas dos amigos como DJ amador. "É uma curtição, quebro galhos em festas de amigos e também sou pago para isso. Dá para tirar alguns trocados."
Perspectivas
Além de não aceitar o rótulo de poetas, esses jovens escritores não pensam em tirar o sustento dos seus versos. Não por receio de contaminar a arte com interesses econômicos, mas por razões práticas: não dá nem para sonhar viver de poesia.
Poucas editoras publicam obras dos novatos. A principal, a Sette Letras, publicou nos dois últimos anos cerca de 80 livros de poesia, com tiragem de 300 exemplares. Uma editora de maior porte, como a Companhia das Letras, publica em média dois livros de versos por ano.
"Publicar poesia é mau negócio para as grandes editoras, que só fazem tiragens grandes. O público desse tipo de livro é pequeno", explica Jorge Viveiros de Castro, 30, dono da Sette Letras.
O jeito encontrado pelos principiantes foi procurar algo próximo, mas que renda um pouco mais no final do mês. O poeta Maurício de Arruda Mendonça, 33, de Londrina (PR), se formou em direito e advogou por seis anos. "Não dava para advogar de dia e escrever de noite. É um ou outro. Agora, trabalho escrevendo e traduzindo peças de teatro", conta. Tradutor de Sylvia Plath e Rimbaud, livros publicados pela Iluminuras, Maurício acaba de publicar seu primeiro livro de poesia "Eu Caminhava Assim Tão Distraído".
Francisco Bosco, que se formou em jornalismo, mas nunca trabalhou na área, assina as letras do próximo disco de seu pai, que deve sair neste mês. "Espero que o disco abra novas perspectivas. Quero transitar nessas duas áreas. Também penso em ir aos EUA fazer um mestrado em letras", diz.
A diplomacia é o "projeto ambicioso" de Pedro, filho do escritor e um dos dirigentes do PSB Roberto Amaral, mas ele não gosta de falar do assunto por temer associações com a carreira de Vinicius de Moraes, Guimarães Rosa e João Cabral de Melo Neto. "Gostaria de prestar concurso para o Itamaraty, não dá para viver de poesia. Mas sei que é difícil passar."
O poeta Sergio Cohn, 23, filho do professor-titular de Ciência Política da USP, Gabriel Cohn, edita a revista semestral "Azougue", com uma tiragem de 1.500 exemplares, já no quarto número, voltada para poesia e literatura. Sergio, que largou a faculdade de filosofia no primeiro semestre, pretende montar uma editora. "A revista opera no vermelho, mas é um investimento, pois traz um retorno para o que a gente quer fazer depois, seja escrever ou fazer parte do mercado editorial."
Ele conta que montou a revista por causa do "vício de nomes" dos jornais e do meio editorial. "Os autores que me influenciaram, como Roberto Piva e Afonso Henriques Neto, não estavam nos jornais, e seus livros estavam fora de circulação."
Outro problema que Sergio aponta é a ausência de avaliação da nova poesia pelos críticos. "Não há um trabalho crítico. É irreal, pois há uma riqueza de texto muito grande ocorrendo e não há uma análise. A maior parte da crítica é voltada para os poetas já consagrados", reclama.
"Há abismo, um vazio crítico. Não houve avaliação dos novos, nem dos poetas dos anos 70. Todo poeta busca alguém para comentar o seu trabalho", diz Heitor.
Sem espaço na mídia, esses poetas buscam avaliações de pessoas que admiram. O prefácio de "Vívido", de Pedro Amaral, foi escrito pelo filólogo Antônio Houaiss, membro da Academia Brasileira de Letras. Em um de seus trechos, Houaiss diz que Pedro "inoculou nos 'seus' leitores o vício de lê-lo ou, pior, de esperar lê-lo a cada dia que passar" e, mais adiante, chama o livro de "um raio de luz".
"O primeiro poema que mostrei para Houaiss era uma idéia romântica, algo como 'Bebo leite no leito, deleito-me'. Ele falou: 'Mas isso aqui está muito chato'. Foi muito legal. Ele me destruiu, mas às vezes temos de ser destruídos", conta Pedro. Ele também recebeu elogios do poeta Manoel de Barros: "Gostei muito do livro do menino. Não tenho dúvida de que ele já é bom, e no futuro será um grande poeta", afirma.
Felipe Nepomuceno enviou "O Marciano" para o escritor Sérgio Sant'Anna. Sua crítica acabou virando prefácio do livro. "Gostei muito da poesia do Felipe, é muito objetiva. Temos dificuldade com poesia devido à subjetividade, então foi um achado dele. Seu olhar sobre as cidades é muito original", disse Sant'Anna.
Heitor foi procurar o poeta José Paulo Paes logo que começou a escrever. "Tinha necessidade de mostrar meu trabalho alguém. José Paulo Paes leu e mandou um cartão, dizendo: 'Gosto disso, disso e disso', apontando quatro ou cinco poemas. O que poderia parecer um soco no estômago, foi importantíssimo. Reli os poemas que ele achou interessante e comparei-os com os outros. Ele tinha razão", conta Heitor.
Paixão
A julgar por seus poemas, que falam de cidades, favelas, astronautas, poderíamos imaginar que essa geração de poetas propõe uma poesia menos emotiva, mais "moderna". No entanto, adeptos da máquina de escrever e da escrita à mão, eles negam o amor platônico, mas admitem influências provocadas por uma paixão.
"Estar apaixonado não significa que você vai escrever melhor, mas certamente vai ter mais assunto", afirma Francisco. Ele já deu nome de mulher para um de seus poemas e chamou de musa a amada, mas são raros os seus textos que tratam desse tema. Até porque, contrariando os protótipos do poeta romântico, o próprio autor já se declarou um "mulherengo".
Pedro se inspira não na paixão, mas na ressaca do fim de amor. "Estar apaixonado quando se escreve poesia me lembra o que disse alguém: 'Foi um grande amor, mas não rendeu um livro'. Escrever decorre de uma certa insatisfação. Quando você está feliz, amando, não tem vontade de escrever. Tenho vários poemas inspirados em namoros, mas foram escritos depois do fim do relacionamento", conta.
Heitor diz que a paixão atrapalha a produção literária, já que todo o tempo deve ser aproveitado com a namorada. "Gosto do que Murilo Mendes dizia: 'Se o amor acabar, não me suicidarei. Escreverei mais poemas'. O problema é o pé-na-bunda, que gera muita poesia, mas é poesia ruim."
Apenas Maurício, "mais velho", usa a maturidade para explicar que inspiração nada tem a ver com paixão. "Hoje percebo a mudança do interesse e do impulso da minha emoção. A temperatura, o vento, a a chuva me levam a escrever. Acho que é a idade, as preocupações mudam."

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