São Paulo, segunda-feira, 3 de novembro de 1997
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Lições de Hong Kong

JOÃO SAYAD

Seria justo e razoável que nesta segunda-feira as colunas de economia explicassem com clareza o que está acontecendo nas Bolsas de Valores.
Não será esta a primeira nem a única vez que coisas justas e razoáveis não podem ser feitas.
Primeiro, por que as opiniões dos especialistas de agora e do passado são divididas e polêmicas.
Keynes e outros economistas, hoje em dia considerados ultrapassados, achavam e acham que a Bolsa de Valores funciona como um cassino.
Que os investidores compram e vendem ações baseados apenas na expectativa do que outros investidores acham, se essas ações são boas ou se este é um bom momento para comprar.
A Bolsa funcionaria como um concurso de miss Brasil onde os jurados tentam escolher a mulher mais bonita, não levando em conta suas próprias inclinações, gostos e manias, mas tentando descobrir que mulher os outros jurados vão escolher como a mais bonita. E os outros jurados decidem da mesma forma. É um processo de adivinhação de terceiro grau.
Esse tipo de comportamento é muito comum em mercados onde não existe diferença entre produtos novos e usados. Uma ação da IBM é igualzinha a outra ação da IBM, não importa se emitida agora ou há dez anos.
O mesmo acontece no mercado de ouro, de terrenos urbanos e rurais, de imóveis, de obras de arte. Nesses casos, o mercado negocia diariamente a totalidade dos bens daquele tipo produzidos desde o início da história da humanidade. O custo de produzir novos produtos não tem importância para definir o preço. Por isso, fica valendo apenas a idéia de cada um, o sonho ou pesadelo.
O preço do ouro, por exemplo, não é afetado pelo custo de extrair ouro nas minas de Serra Pelada.
O ouro novo extraído de Serra Pelada mais o ouro recém-extraído da África do Sul são insuficientes para afetar o preço. Pois o mercado negocia ouro de todos os tempos, uma quantidade muito maior: ouro dos faraós, dos sumérios, dos anéis dos noivados desfeitos, das viúvas e dos casamentos que deram certo, mas os casais precisaram penhorar as alianças.
Isso não acontece com tomates ou batatas. Se o chacareiro de Vargem Grande especular com tomates, tentando fazer com que o preço suba acima do custo de produção, seus vizinhos produzem mais tomate. O mercado negocia com tomates colhidos há apenas alguns dias. Por isso, a especulação não dura muito e o preço cai rapidamente até ficar igual ao custo.
Há 20 anos que ninguém acredita mais nessa versão. A globalização dos mercados financeiros produziu nova teoria: os mercados acionários são eficientes, isto é, prevêem corretamente os preços de cada ação e talvez de todas as ações e funcionam muitíssimo bem. Às vezes, temos bolhas especulativas, mas de curta duração (dez anos?), que se desfazem com algumas alfinetadas do próprio mercado.
Então, por que caiu a Bolsa de Hong Kong? E, depois, por que caíram todas as outras Bolsas, inclusive as do Brasil?
Podemos dar duas explicações de acordo com as duas teorias.
Primeiro, afirmar junto com os contemporâneos que as Bolsas funcionam muito bem e os investidores descobriram, ainda que muito tarde, que as ações das empresas do Sudeste Asiático, assim como da China e também de Nova York e Paris, não podiam dar lucros proporcionalmente tão altos como os preços dessas ações.
A verdade apareceu: Hong Kong é uma ilha de apartamentos muito caros que era a porta da China e agora é a própria China; a China é uma incógnita política e institucional; a Tailândia, a Malásia e as Filipinas, juntas, são menores do que o Brasil, dominadas por reis ou ditadores, queimam florestas, pagam mal seus trabalhadores e importam muito mais do que exportam.
A verdade mostrou sua cara e os preços caíram. O paraíso imaginado pelos neoliberais não existia. Descoberta a verdade, os preços vieram abaixo. A Bolsa funciona, mas o modelo neoliberal do Pacífico não existe.
A outra explicação é que os investidores sabiam que a realidade não era tão bonita quanto se dizia, mas, como todos diziam que era bonita, valia a pena comprar e depois vender. Nunca ninguém acreditou de fato em nada. Acreditavam apenas que os outros acreditariam. A Bolsa caiu porque subiu.
No caso que estamos vivendo, ambas as explicações são boas. Não há por que discutir.
O importante são as consequências. Com a queda das Bolsas, pode cair o consumo. As pessoas estão mais pobres e precisam poupar mais. Podem cair os investimentos -é mais difícil financiá-los e menores as perspectivas de lucro. Consequentemente, pode cair a produção e aumentar ainda mais o desemprego. No Brasil e no mundo inteiro.
Não está na hora de clamar por mais poupança, nem por salários nominais flexíveis nem por corte de déficit público. Só falta esse tipo de discurso para repetirmos a crise de 30. Portanto, as famosas reformas constitucionais podem apenas agravar a crise. Vale a pena mudar de assunto, pelo menos enquanto a crise se desenvolve.

Texto Anterior: De arromba; Colisão à vista; Em gestação; Decisão de consenso; Hora da ração; Atração animal; Representação latina; Nova licença; Túnel do tempo; Contrato fechado; Vizinho contaminado; Custos médios; Com gás; No bloco; Casamento indesejado; Importando experiência; Abrindo as portas; Evitar acidentes; Renovando a marca; Perdendo as contas
Próximo Texto: Privatização e agências reguladoras
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.