São Paulo, segunda-feira, 3 de novembro de 1997
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J.D. SALINGER

CASSIANO ELEK MACHADO
DA REDAÇÃO

"Juro por Deus que, se eu fosse um pianista, ou um autor, ou coisa que o valha, e todos aqueles bobalhões me achassem fabuloso, ia ter raiva de viver. Não ia querer nem que me aplaudissem. As pessoas sempre bateram palmas pelas coisas erradas. Se eu fosse pianista, ia tocar dentro de um armário."
J.D. Salinger (pág. 75 de "O Apanhador no Campo de Centeio")

Quando Jerome David Salinger publicou "O Apanhador no Campo de Centeio", em 1951, não havia como imaginar que o escritor estivesse sendo tão sincero nas palavras de seu personagem Holden Caufield.
Dois anos e 15 milhões de exemplares depois, Salinger deixou Nova York e se mudou para Cornish, povoado com menos de mil habitantes em New Hampshire (EUA).
Encarapitada em uma montanha de difícil acesso, sua nova residência viu crescer duas muralhas consistentes.
A primeira, de madeira e pedra, começou e terminou a ser construída nesse mesmo ano.
A segunda, invisível, só foi concluída em 1965, quando Salinger preencheu da página 32 à 113 da revista "The New Yorker" de 19 de junho com a novela "Hapworth 16, 1924".
Desde então, não somente o escritor nunca mais publicou uma linha de sua autoria, como mergulhou na tarefa de evitar que outros o fizessem.
Seguiu assim as pedras do caminho que nomes tão distintos como a atriz Greta Garbo, o escritor Thomas Pynchon -que muitos duvidam que exista- ou o "vampiro curitibano" Dalton Trevisan optaram por trilhar.
No próximo mês, não se sabe se em busca das "palmas que as pessoas batem pelas coisas erradas", o "pianista" sai do armário pela primeira vez em 34 anos.
Salinger autorizou, e uma pequena editora chamada Orchises Press, de Alexandria (Virgínia), especializada na publicação de poetas pouco conhecidos, lança em dezembro o esperado quinto livro do escritor.
Mais uma vez, como fizera nos três anteriores, não se trata de material inédito. Com o mesmo tijolo que Salinger concluiu sua muralha de silêncio, ele se prepara para abrir uma pequena fresta: a novela "Hapworth 16, 1924".
A publicação poderia passar desapercebida. Uma pequena revista literária on line de literatura noticiou o lançamento discretamente.
O irmão de uma redatora do "Washington Business Journal" passeava pela Internet e topou com a informação. "Anti-salingerianamente", o jornal publicou a notícia com estardalhaço.
Mais tarde, o editor da Orchises Press, o professor de inglês Roger Lathbury, disse que não haveria nenhuma espécie de promoção do livro em respeito aos pedidos de Salinger.
O "Washington Post" publicou declaração de Lathbury em que ele dizia: "Infelizmente está predominando uma mentalidade de marketing que não tem nada a ver com as experiências literárias".
Salinger abriria sua cancela literária com a tarefa de deixar "as coisas do jeito que estão".
Ele já anunciara esse desejo por meio de Holden "Apanhador no Campo de Centeio" Caufield: "Há coisas que deviam ficar do jeito que estão. A gente devia poder enfiá-las num daqueles mostruários enormes de vidro e deixá-las em paz. Sei que isso não é possível, mas é uma pena que não seja...".
Quando soube que Salinger deixaria, ainda que de modo imperceptível, sua redoma de vidro -a família que estrela todos os livros do autor, com exceção de "Apanhador...", se chama Glass, vidro em inglês-, o escritor Ron Rosenbaum, especialista em grandes reportagens, resolveu partir em direção a Cornish.
Resultado de cinco meses imersos no zen budismo de Salinger, sua reportagem-crônica-ensaio foi publicada na revista "Esquire".
O texto de 7 metros, que a Ilustrada publica de hoje até sexta-feira, pode ser considerado a primeira redação salingeriana publicada na imprensa sobre Salinger -sobretudo porque Rosenbaum soube como poucos repórteres respeitar o silêncio do escritor.
Como base de seus questionamentos, ele adotou a frase que Salinger acrescentou sorrateiramente na abertura de sua coletânea de contos "Nove Estórias": "Nós todos conhecemos o som de duas mãos que aplaudem. Mas qual será o som de uma única mão que aplaude?".
É esse o barulho que emana de "Hapworth 16, 1924".
O texto é estruturado como uma carta que Seymour, o primogênito da família Glass, escreve aos sete anos, de um acampamento de verão.
O desenlace da vida de Seymour (see more, ver mais em inglês) já havia sido apresentado 12 anos antes. Em "Um Dia Ideal para os Peixes-Banana", publicado em "Nove Estórias", o personagem, então com 31 anos, se mata com um tiro na têmpora.
Quem "apresenta" a narrativa é Buddy, irmão de Seymour e um dos muitos alter egos que povoam a pequena obra de Salinger -Buddy é um escritor de 40 anos; Salinger escreveu o conto aos 44 anos.
O estilo da narrativa que será lançada em dezembro passa pelas mesmas veredas de "O Apanhador no Campo de Centeio".
Assim como no livro que transformou Salinger em um "cult", a linguagem de "Hapworth" é repleta de gírias e repetições ("uma espécie de pré-minimalismo?" questionou certa vez o dramaturgo Caio Fernando Abreu em texto sobre Salinger).
A tarefa de Seymour, assim como a de Holden e, claro, do próprio Salinger, continua a mesma: abaixo toda "lenga-lenga tipo David Copperfield".

LEIA MAIS sobre Salinger à pág. 5-3

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