São Paulo, segunda-feira, 3 de novembro de 1997
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Sexo, sushi e Tiririca na banheira do Gugu

FERNANDO GABEIRA
COLUNISTA DA FOLHA

Uma repórter telefonou no domingo à tarde. Tiririca estava na banheira do Gugu com uma bela garota, e, no programa do Faustão, serviam sushi sobre o corpo de uma loura nua. O que achava disso? Fui surpreendido porque estava com a TV desligada. Preparava a intervenção num seminário em Brasília e, portanto, não podia achar muita coisa.
No dia seguinte, li comentários esparsos nos jornais, vi as fotos, a indignação moral e tudo o que acontece depois de um grande escândalo no Brasil. Aliás, já era tempo de estudarmos a reação nacional diante deles (os escândalos), a começar por aquela performance de Lilian Ramos, fotografada sem calcinha ao lado do presidente Itamar, um político ingênuo, que não poderia imaginar o que ela tinha entre as pernas naquela noite de Carnaval.
Mesmo depois de informado sobre os programas populares de domingo, não conseguia expressar uma posição clara. Tinha até uma certa inveja daquelas pessoas seguras de tudo, que diziam simplesmente: "É um horror, isso não pode acontecer".
Primeira dúvida: foi uma investida do erotismo na modorrenta tarde dominical ou aconteceu o contrário, uma neutralização do erotismo como um recurso desesperado contra o tédio familiar? A mulher nua glamourizava o sushi ou o contrário?
Tiririca na banheira representa mesmo um explosivo, mandando para os ares nossos cintos de castidade?
Segunda dúvida: grande parte dos críticos tem acesso aos canais de assinatura, em que, além de documentários inteligentes, sempre aparece um ou outro programa com mulheres nuas, uma suave pornografia para começar a madrugada.
Podem argumentar que esses programas não são mostrados para crianças ou que têm um gosto mais refinado? O argumento de que os programas dominicais são vistos por todas as idades é o mais forte. Mas como ignorar a escalada de erotismo na publicidade, nas novelas, nos clipes musicais? Por que estabelecer uma censura precisamente naqueles que são populares? Por que lhes falta sutileza?
O melhor é encarar a pornografia como um processo histórico, que se desenvolveu em quase todos os países que conquistaram a democracia na década de 70.
O exílio me permitiu ver várias democracias emergindo, no sul da Europa e na América Latina. Em todas elas, não por acaso, um marco da abertura política eram enormes filas diante dos cinemas que exibiam "O Último Tango em Paris".
Quando as bancas de jornal, no fim dos 70, se encheram de revistas pornográficas, ninguém se deu conta de que aquilo iria acabar se transferindo para os programas de TV. Mas os dados da própria abertura autorizavam isso: o proibido no mundo político começaria aparecendo nos livros, saltaria para o teatro, revistas e, finalmente, iria ser mostrado na TV na forma da série "Anos Rebeldes".
A pornografia poderia seguir o mesmo rumo. Dos veículos de elite para as grandes massas. Por que a indústria iria se deter apenas nas revistas, se as possibilidades da produção de vídeos eróticos estavam no ar, e canais especificamente voltados para o tema poderiam ser abertos?
O avanço da pornografia, de certa forma, acabou sendo absorvido, ampliando o nível de tolerância social: as modelos na França desfilaram nuas, com roupas transparentes, nos grandes shows da moda. A elite integrou a audácia no seu cotidiano, a indústria musical quase não grava um clipe sem movimentos eróticos, sem passos que representem o ato amoroso.
Agora, resolvido o problema na cúpula, vamos todos dar uma olhada no comportamento popular. Estão exagerando? Sabem que isso faz mal depois do almoço? Conhecem suas crianças? Por que não escolhem um enredo melhor, outras luzes, uma atmosfera, enfim?
É uma linha de raciocínio que pode desembocar na tentação da censura, na verdade, uma recusa em ver as coisas em movimento. O erotismo foi introduzido na competição entre os programas dominicais porque aumenta a audiência, ainda responde às últimas etapas do processo de tudo saber, tudo ver. Quando as grandes platéias tiverem sua curiosidade satisfeita, o tema perde o encanto, embora nunca será desprezível.
Pode-se contra-argumentar que o erotismo manterá sempre sua capacidade de atração, ou que sua influência será crescente. Nesse caso, de novo, o ponto terá de ser colocado claramente: como resolver a questão de milhões de famílias que aceitaram incorporar uma dose de erotismo no seu lazer dominical?
Todas as tribunas morais podem estar abertas para o protesto. Mas o princípio da liberdade de expressão, o mesmo que fundamentou o caso Larry Flint, continuará sendo a questão principal numa democracia.
Recentemente, quando se chegou ao clone de uma ovelha, uma nova discussão moral surgiu em torno do direito de tudo saber. A clonagem humana foi proibida em alguns países. Ciência e pornografia colocam no seu curso dramáticas interrogações. E se os autores dos programas populares descobrirem o Marquês de Sade e o traduzirem num jogo de auditório?
O ideal seria que se soubesse apenas o que se pode ser moralmente responsabilizado. Nem sempre é assim, certas obscenidades, como a bomba atômica, escaparam do controle e vieram à luz. A humanidade levará mais de um século para se livrar dela.

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