São Paulo, segunda-feira, 3 de novembro de 1997
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Lichtenstein despiu o mundo de falsos simbolismos

VIK MUNIZ
ESPECIAL PARA A FOLHA, EM NOVA YORK

Há alguns meses, enquanto esperava na fila de um cinema na Houston Street, percebi em minha frente a presença do grande artista americano Roy Lichtenstein.
Espantou-me o antagonismo entre a realidade daquele homem modesto e sua imagem passada pela mídia. Mais curiosa foi a idéia de ser capaz de reconhecer uma face com a qual eu somente tive contato por imagens ornamentadas com legendas sintéticas e estereotipadas.
O homem Roy Lichtenstein incorporava o dualismo entre realidade e representação. "A arte está relacionada à percepção do que é natural, e não à natureza ela própria." A frase que vem direcionando a produção do meu trabalho saiu um dia dos lábios de um desses dois Lichtensteins.
Roy Lichtenstein, o homem, percebeu, ao retornar da guerra, um universo visual imerso em ilustrações banais e narrativas infantis, sintomas de uma nação ansiosa por encontrar um receptáculo para o entusiasmo da vitória.
Uma nação sedenta por ídolos simples, repleta de sentimentos que só encontravam vazão pelo cinema e pela imprensa.
Roy, o artista, não pôde deixar de notar a discrepância entre a sensibilidade neoplatônica do expressionismo abstrato, predominante na época, e o desenvolvimento de uma cultura de massa cujos valores se baseavam em facilidade, acesso e distribuição.
Mesmo consciente da hipocrisia resultante desse dualismo, Lichtenstein julgou que uma dessas duas correntes deveria estar enganada. Seguindo o ditado "Os dez milhões de fãs do Elvis não podem estar errados", decidiu abandonar o elitismo estético da pintura abstrata da época e conduzir sua pesquisa visual dentro dos labirintos transparentes e abismos superficiais da cultura de massa.
Um passo audacioso, mas que, orquestrado com graça, inteligência e competência, lhe rendeu o título de "pai da pop art".
Na apática aparência da maioria dos trabalhos do pintor se encontra a profunda preocupação do homem Roy Lichtenstein em despir o mundo visual de falsas idealizações e simbolismos e de objetivar a sensibilidade visual do homem moderno, em desvendar a gramática de um olhar adulterado e confrontar a sintaxe do nosso conhecimento visual tendo em mente suas origens mais sinceras.
O verdadeiro espelho da vida contemporânea está baseado no reconhecimento de uma negociação entre a proliferação das mídias de massa e dos efeitos que essas mídias produzem no indivíduo.
Dentro dessa definição, Lichtenstein e Warhol são os artistas que mais souberam refletir a consciência estética do povo norte-americano do pós-guerra.

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