São Paulo, quarta-feira, 5 de novembro de 1997
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Outras instabilidades

ANTÔNIO BARROS DE CASTRO

Mal saído de um longo e traumático período de alta inflação crônica, o brasileiro ainda identifica instabilidade com a alta desordenada dos preços. Nela, caracteristicamente, os preços sobem a velocidades estonteantes enquanto as "correções" (elevações) de preços, descontinuamente realizadas, introduzem mudanças de preços relativos desprovidas de qualquer sentido.
Operando sobre este patrimônio de vivências, os formuladores do Plano Real se esmeraram na tarefa de enaltecer os méritos da estabilidade. Nela, além de os preços, em média, pouco se alterarem, as alterações de uns preços em relação a outros, longe de refletir (ou introduzir) distúrbios, teriam por missão informar os agentes econômicos acerca das carências ou excessos verificados nos mercados.
Em suma, a estabilidade, ao "limpar" o sistema por meio do qual os agentes econômicos se informam, estabeleceria as condições para que os mercados se tornem eficazes no atendimento às preferências manifestadas pelos consumidores. Mais que isso, ao conferir segurança à tomada de decisões, estabeleceria as condições requeridas pela retomada do crescimento. Este encontrava-se anteriormente inviabilizado, em meio a um quadro em que, nas palavras de Pérsio Arida, "o caro e o barato perdem significado pela flutuação ensandecida dos preços ..." (1).
Tendo na memória as agruras de um turbulento passado e havendo recebido, em maciças doses, as idéias que acabam de ser evocadas, o público brasileiro (e não apenas ele, seguramente) está hoje sendo submetido a uma dura experiência. Numa palavra, está sendo levado, aos trancos e barrancos, a descobrir a existência de outras instabilidades.
A primeira descoberta consiste em que a sustentabilidade -ou não- da posição da economia frente ao exterior passou a depender de avaliações incessantemente feitas e refeitas por parte daqueles que nela decidem colocar ou retirar dinheiro. E estas avaliações dependem, por sua vez, fortemente, do juízo acerca do estado de outras economias. Mais que isso: o fato de que a apreciação de outros casos (digamos, o Sudeste da Ásia) sofra deterioração, pode significar, tanto uma melhora da nossa situação (como supôs Gustavo Franco), quanto o seu agravamento (como veio a se verificar). A bem dizer, não se sabe nem sequer o que está sendo de fato avaliado: entre os países que vieram a sofrer ataques especulativos há exemplos de solidez fiscal, de grande volume de reservas, de privatização concluída (ou não). Por último, mas não menos relevante, o tipo de instabilidade até este ponto referido pode, comprovadamente, conviver com a ausência da instabilidade (inflação) de que nos livramos.
A outra instabilidade (re)descoberta consiste na volatilidade dos preços dos ativos. Trata-se aqui de uma dupla movimentação de preços relativos: de umas ações em relação às outras e delas em relação aos produtos. Em meio a essa "flutuação ensandecida" dos preços, mais uma vez, não há como saber o que é caro e o que é barato ...
Estamos, em suma, mergulhados numa nova e diferente pane do sistema de informações.
Uma das diferenças básicas entre a atual instabilidade e aquela característica da alta inflação é que, neste último caso, toda a responsabilidade podia ser atribuída a "erros de governo". No presente caso, contudo, além das eventuais contribuições dos gestores da política econômica (não é este o objeto do artigo), não há como isentar a irracionalidade exibida pelos próprios agentes econômicos -daqui do exterior- agindo em defesa de seus interesses e de acordo com as regras do jogo.
Ao introduzir a possibilidade de interrupções do pregão para "eles tomarem água com açúcar", o presidente do Banco Central corajosamente reconheceu ("Jornal do Brasil", 29/10 de 1997) que a irracionalidade dos agentes econômicos pode ter que ser contida, em nome do bem público. Duas ponderações devem contudo ser tidas em conta.
Primeiramente, podemos estar seguros de que ninguém aproveita a pausa para verificar se os "fundamentos" (o déficit público, o de transações correntes, o Programa de Privatizações etc.) estão recebendo o devido tratamento por parte do governo. Por outro lado, faz muito pouco sentido atribuir os últimos incidentes meramente à globalização. Distúrbios mais graves que os agora presenciados ocorreram em 1929, tendo as suas consequências sido propagadas por meio de uma desastrosa sequência de "desvalorizações competitivas". Foi isso que motivou a reconstrução das instituições capitalistas no imediato pós-guerra. Sua deconstrução parece haver sido recentemente concluída. E o retorno amplificado da instabilidade pode ser uma de suas mais graves consequências.

(1)Pérsio Arida em "Estabilização e Crescimento", "Gazeta Mercantil", 2 de outubro de 1995.

Antonio Barros de Castro, 58, professor-titular da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro) e ex-presidente do BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social), escreve às quartas-feiras, a cada 15 dias, nesta coluna.

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