São Paulo, quarta-feira, 5 de novembro de 1997
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O uso inadequado de antibióticos

VICENTE AMATO NETO; JACYR PASTERNAK

É fantasia julgar que tudo no hospital corre de maneira harmônica, ainda mais quando lidamos com egos cirúrgicos
VICENTE AMATO NETO e JACYR PASTERNAK
Antibióticos são fundamentais para tratar infecções. Não são bons antitérmicos ou sedativos de angústias dos médicos; não suprem problemas técnicos durante cirurgias. Têm indicações precisas na maior parte dos casos.
Seu uso inadequado causa a prevalência de resistências. Elas não são provocadas pelo antibiótico numa relação de causa/efeito. Surgem ao acaso; é a pressão de seleção, ou seja, o uso da droga, que faz com que se disseminem.
O emprego incorreto, portanto, gera problemas futuros. Isso cria outro tipo de especulação: o médico deve preocupar-se com o seu doente aqui e agora ou é ecologicamente motivado a pensar nos próximos doentes e no futuro?
Esse conflito é real e complexo. As técnicas de controle da utilização de antimicrobianos tornam-no agudo. Afinal, isso implica limitar a liberdade profissional de receitar dos médicos. Alguns, irritados, argumentam que, se a comissão de controle de infecção hospitalar altera a prescrição, deve assumir responsabilidade pelo paciente.
Apesar do impasse, temos certeza de que diálogo constante e bom senso permanente permitem soluções em benefício do enfermo, alvo final das ações.
É fantasia julgar que tudo no hospital corre de maneira harmônica, ainda mais quando lidamos com egos cirúrgicos -se bem que alguns egos clínicos são até maiores. Outros profissionais podem interpretar o interesse do infectologista por sua prescrição como predatório, e isso nem sempre é paranóia.
Uma comissão para controlar a infecção hospitalar vincula-se a alto sentido ético. Quem a dirige em hipótese alguma deve procurar clientela dessa maneira. Uma comissão é dirigida preferencialmente por infectologista ou epidemiologista clínico. Qualquer hospital, por lei, precisa contar com a sua.
Claro que a lei é cumprida reiteradamente apenas no papel. É pena. Uma comissão é um dos raros colegiados cuja relação custo/benefício é favorável no contexto da assistência médica.
O controle do uso de antibióticos pode e deve ser feito, mas os mecanismos são variados. Nos EUA, a maior parte dos hospitais usa o mesmo sistema vigente no Brasil. O remédio é dado durante 48 horas; depois, a prescrição pode ou não ser mantida, de acordo com a opinião da comissão. Se ela se negar, precisa entender-se com o médico e estabelecer algum tipo de consenso.
O uso dos antibióticos seria muito mais racional e eficiente se todos os hospitais tivessem normas de controle e avaliação da qualidade, com protocolos discriminando condutas por patologias. Todavia isso, real na América do Norte, está longe de ser verdade aqui.
Não temos infectologistas suficientes para ocupar todos os cargos de direção de comissões de controle de infecção hospitalar. Como os demais especialistas, no Brasil eles concentram-se nos maiores hospitais e centros médicos.
As entidades de praticantes de controle de infecção existem e funcionam, Um bom exemplo é a Associação Paulista de Estudos de Controle de Infecção Hospitalar, que tem correta conotação multiprofissional.
A atuação do infectologista, desde o dia-a-dia das comissões até a participação ativa e interessada nessas associações, é fundamental. Associações e comissões devem também manter íntima relação com os setores administrativos dos hospitais. Assim, quando chegar um novo antibiótico à praça, terão que discutir sobre como e quando usá-lo.
Peguemos como ilustração as cefalosporinas de quarta geração. Elas devem ser usadas em situações bem definidas e com lógica, sem constituir só mais uma das muitas drogas cujo abuso leva à perda previsível de eficácia.
Ninguém discute a relação da emergência de resistência progressiva com o uso inadequado dos antibióticos, como ninguém nega a possibilidade de uma cepa bacteriana resistente passar essa resistência a cepas que jamais viram o fármaco de perto. O infectologista precisa raciocinar ecologicamente, para aumentar a vida útil do antibiótico.
Por mais que a indústria farmacêutica se esforce, a obtenção de novos remédios corre muito atrás da imensa capacidade, por variação genética, de as bactérias adquirirem resistência.

Vicente Amato Neto, 70, infectologista, é professor titular do Departamento de Doenças Infecciosas e Parasitárias da Faculdade de Medicina da USP.
Jacyr Pasternak, 57, infectologista, é médico-assistente da Divisão de Clínica e Moléstias Infecciosas e Parasitárias do Hospital das Clínicas da USP.

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