São Paulo, quarta-feira, 5 de novembro de 1997
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Violência e esperança

CARLOS ALBERTO IDOETA

Começa no dia 7 e vai até o dia 9, na Venezuela, a 7ª Cúpula Ibero-Americana de Chefes de Estado e Governo. Convocada sob o lema "Os valores éticos da democracia", ela propõe um diálogo sobre governabilidade democrática e direitos humanos. Oportunidade para um balanço da situação na América Latina e na Península Ibérica.
Desde a primeira cúpula, no México, em 91, os chefes de Estado e de governo manifestam publicamente seu compromisso com a proteção dos direitos humanos e a consolidação da democracia.
Avanços notáveis foram registrados. A era das ditaduras militares chega ao fim. As leis de muitos países incorporam importantes normas de direitos humanos e mecanismos de proteção. Os conflitos armados na América Central tiveram soluções políticas.
Os Estados ibero-americanos ratificaram a maioria dos tratados de direitos humanos. Missões de observação da ONU visitaram a região, com impacto positivo. A Assembléia Geral da OEA adotou em 1994 a Convenção Interamericana sobre o Desaparecimento Forçado de Pessoas, instrumento regional com vocação universalista, aberto à adesão de qualquer país.
Foram criadas ou consolidadas instituições como ouvidorias, comissões e procuradorias de direitos humanos. Organizações não-governamentais ativas e profissionais oferecem ao cidadão mais recursos diante dos excessos do Estado. Em maio de 1996, o Brasil lançou um pioneiro Programa Nacional de Direitos Humanos.
No limiar do novo milênio, contudo, permanece o abismo entre as intenções e a realidade crua. Os avanços parecem insuficientes para atacar a raiz do flagelo das violações mais graves.
Execuções extrajudiciais e "desaparecimentos" continuam no Brasil e no México. A Colômbia registra mais de 30 mil assassinatos políticos desde 1986, na maioria cometidos pelas Forças Armadas ou por seus protegidos paramilitares. Na Guatemala, correm risco de vida líderes indígenas e sindicais que se oponham ao poder dos latifundiários e políticos locais. No Peru, governo e grupos armados mantêm uma guerra que já conta mais de 27 mil mortos.
Grupos armados de oposição na Colômbia, na Espanha e no Peru violam normas humanitárias básicas, com sequestros, torturas, execuções e uso de minas. Pessoas ainda são detidas por crenças políticas ou religiosas ou pelo simples exercício de seus direitos civis na Bolívia, no Chile, no Equador, na Espanha e no Uruguai. Em Cuba, onde o Partido Comunista é o único legal, cerca de 600 presos de consciência cumprem penas de até 15 anos por ter tentado exercer pacificamente o direito de expressão, reunião e associação.
Nas capitais ibero-americanas, as prostitutas, os viciados em drogas e os homossexuais marginalizados são assassinados por grupos que se denominam "justiça privada".
No Brasil, a polícia e os "esquadrões da morte" -que, muitas vezes, incluem policiais de folga- executam ou fazem "desaparecer" adolescentes e crianças de rua. A Anistia Internacional tem constatado o uso excessivo da força no trato de conflitos sociais e distúrbios sindicais na Argentina, Costa Rica, República Dominicana e Paraguai.
A volta da pena de morte judicial trombou com a tendência abolicionista ibero-americana. Em setembro de 1996, a Guatemala retomou essa perversa e inútil prática, com o fuzilamento público e televisionado de dois condenados. Um deles não morreu com a primeira descarga. Os espectadores assistiram ao pelotão atirando na cabeça.
Tortura e maus-tratos de presos seguem sendo rotina na Argentina, Brasil, Colômbia, Chile, Equador, Espanha, México, Peru... Em Portugal, foram a novidade encontrada pelo Comitê Europeu para a Prevenção da Tortura. A violência cotidiana e as condições de reclusão a que se submetem centenas de milhares de presos mostram a degradação dos presídios latino-americanos. Elas causam motins sufocados, muitas vezes, com violência.
Na região, os militantes de direitos humanos podem ser tachados de "subversivos" ou "idiotas úteis". Por trás de tudo está a impunidade. Herança das anistias concedidas a torturadores e assassinos das ditaduras nas Américas do Sul e Central, ela continua presente nos regimes constitucionais.
Entre os obstáculos ao esclarecimento das violações e à punição dos culpados, destaca-se a lei que permite aos policiais e militares indiciados ser processados por Justiças especiais, nas quais a imparcialidade e a idoneidade para julgar os crimes têm sido questionadas -até em foros internacionais.
No arsenal da impunidade, encontramos os poderes excessivos estendidos aos órgãos de segurança e a atitude complacente das autoridades civis.
Manter a ordem social é dever do Estado. Mas a inquietação com a escalada da criminalidade não pode autorizar as polícias a cometer sua própria justiça. Os "esquadrões" e suas vítimas são a face mais visível dessa ordem social paralela, preservada por homicídios ilegais, tortura e "limpeza social". O terror cometido ou consentido pelas autoridades não produz segurança e degrada as sociedades nas quais se instala.
A Anistia pede aos chefes de Estado e de governo ibero-americanos que assumam, com vontade política, compromisso com um elenco de medidas: fim da impunidade para abusos graves, reparação a vítimas e familiares, liberdade imediata e incondicional para presos de consciência, erradicação da pena de morte na lei e na prática, reconhecimento e proteção para os militantes de direitos humanos, asilo justo para perseguidos de qualquer origem.
A governabilidade democrática se funda nos valores mais caros à humanidade: paz, justiça e direitos humanos. As alternativas ao Estado de Direito sempre serão o medo e a miséria.

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