São Paulo, quinta-feira, 6 de novembro de 1997
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O que dizer à última pessoa privada do país?

RON ROSENBAUM
DA "ESQUIRE"

No decorrer de minhas pesquisas, descobri algumas outras coisas surpreendentes sobre Salinger. Fiquei sabendo que, além da crônica da família Glass, ele também escreveu um roteiro de uma peça, um esboço de algum tipo, em que seu fiel narrador e alter ego da família Glass, Buddy, é forçado a enfrentar críticas sobre o rumo cada vez mais enigmático e místico tomado pelas últimas histórias da família Glass escritas por Salinger, obcecadas com a figura de Seymour -eu pagaria para ler esse roteiro.
Também já ouvi, embora tenha menos certeza quanto a isso, que ele talvez tenha escrito alguns roteiros de cinema para produtores europeus, assinando com pseudônimos.
Descobri que Salinger não é um recluso ao estilo Howard Hughes -que ele já viajou no país e no exterior, que vive antenado com a cultura que o cerca, que não se fechou ou se distanciou dela.
E, finalmente, decifrei qual é sua "junk food" favorita.
Descobri isso com uma amiga que, por acaso, se viu atrás de Salinger no balcão de uma "delicatessen" que ele frequenta regularmente. Salinger estava reclamando da espessura das fatias da "soppressata", um salame rústico (ele gosta que seja cortado em "fatias e camadas finas", como a prosa dos primeiros contos que publicou na "The New Yorker"), preocupação que talvez possa representar uma homenagem a seu pai, Sol, que era importador de queijos e carnes.
Pedi a minha amiga que conversasse com a balconista da "delicatessen" e descobri o fato espantoso de que o prato predileto de Salinger é (juro que é verdade) o buracos no meio dos "donuts" (espécie de rosca doce)! O equivalente, em termos de confeitaria, ao som de uma mão batendo palmas.
Mas, de todas essas revelações, a que diz respeito à homeopatia me parece representar a verdade mais contundente em relação a quem é Salinger: se não um curador, então um pesquisador da doença, no sentido mais amplo do termo -um diagnosticador literário da doença mortal que nos aflige, como indivíduos e como cultura coletiva.
Qual seria seu remédio? Fiquei sabendo que Salinger tem interesse especial num remédio homeopático chamado licopódio, uma erva rasteira -é claro que diluída a ponto de se tornar quase invisível.
Uma conferida rápida na literatura homeopática rendeu a revelação fascinante de que existe, entre os discípulos de Hahnemann, algo conhecido como "a personalidade licopódio". Descritas por um homeopata britânico como "tímidas, conscienciosas, meticulosas, mas inibidas, as personalidades licopódio têm aversão a aparecer em público e podem ofender-se com facilidade...".
Tive a misteriosa sensação de que, ao ler o que a literatura homeopática diz sobre a personalidade de licopódio, eu estava tendo um vislumbre indireto do diagnóstico que Salinger faz de sua própria persona -e talvez uma pista que ajude a explicar sua decisão de autorizar a reedição de "Hapworth". Seria um remédio contra a melancolia, receitado pelo doutor Salinger, uma dose minúscula, mas altamente potencializada, de sua presença, injetada outra vez na corrente sanguínea de nossa cultura, uma abertura infinitesimal na muralha com que se cercou, na esperança de evocar, à moda homeopática, uma presença, a memória de uma ausência.
Licopódio para a alma -a nossa e a dele.
Quando atravessei a divisa entre Massachusetts e New Hampshire, numa manhã invernal ensolarada, de degelo repentino, no final de fevereiro, me vi repassando na cabeça várias dúvidas sobre essa minha peregrinação até a muralha de Salinger.
Em primeiro lugar, será que eu conseguiria localizar a casa? Como não tinha o endereço, eu dependeria da bondade de estranhos para me guiar até ela, embora eu já ouvira falar que os cidadãos inóspitos de Cornish, New Hampshire, não fossem conhecidos por sua bondade no trato com estranhos à procura de Salinger.
Na estrada 89, peguei a saída para West Lebanon e segui em direção sul para Cornish, por uma estradinha rural que acompanhava as margens do rio Connecticut, ainda recoberto de gelo. Não fazia idéia do que iria fazer quando chegasse a Cornish.
Depois do recente artigo na revista "New York" que revelou onde fica a casa de Pynchon, ou pelo menos o bairro em que fica, Salinger pode ser a última pessoa privada que ainda resta nos Estados Unidos.
Eu queria encontrar o lugar, mas tinha medo de encontrá-lo -temia que, embora eu jamais publicasse o endereço ou as indicações para se chegar lá, eu pudesse representar uma ameaça, por mais simbólica que fosse, ao último reduto de privacidade no país, uma espécie de privacidade que se encontra quase extinta.
Também temia as perguntas que teria que enfrentar se a encontrasse, perguntas sobre eu mesmo, o que eu faria diante da muralha de Salinger, se eu iria agir como intruso.
Interrogar o silêncio de Salinger, confrontar sua muralha, obrigatoriamente me forçaria a me embater com uma parte de mim que eu talvez não quisesse enxergar.
Mas o destino quis que, meia hora depois de chegar a Cornish, eu me visse diante da entrada para carros da casa de Salinger, olhando para as placas de ENTRADA PROIBIDA, refletindo sobre qual seria meu passo seguinte e sobre os dilemas éticos, literários e filosóficos nele encerrados.
Encontrei o lugar em pouco tempo -não porque seja fácil de encontrar, mas porque tive sorte. O fato de ter sido sorte pura e simples me foi confirmado nos dois dias que passei em Cornish a seguir, testando as pessoas da cidade e a muralha erguida em torno da muralha, pedindo que me levassem até a casa de Salinger e sendo rejeitado.
Algumas pessoas me disseram que não conheciam o caminho; outras disseram não saber quem é Salinger; outras falaram que não me contariam nada, mesmo se soubessem; outras diziam que sabiam mas não me diriam, e outras, ainda, que "o cavalheiro aprecia sua privacidade" ou variações sobre o mesmo tema.
Num armazém geral, o sujeito me disse que estudantes universitários de Dartmouth ainda vão sempre a Cornish à procura da casa de Salinger, mas que "o pessoal não conta onde é" e que ele tampouco contaria. Em outra loja me disseram, com ar de desdém e desaprovação: "Não divulgamos essa informação".
Muralha em torno da muralha
Quer dizer que na cidade de Salinger havia, sim, uma muralha em torno de sua muralha. Mas não era uma muralha intransponível.
No estacionamento de um dos armazéns, depois de ouvir um desencorajador "o pessoal daqui não conta" do dono da loja, topei com um casal idoso numa picape também idosa. Eu disse a eles: "Meu chefe me mandou aqui para encontrar a casa de J.D. Salinger. Só a casa, não para tentar incomodá-lo. Será que vocês poderiam me ajudar?".
O velho na picape começou a me dar orientações complicadas que terminavam com: "Siga a estrada até o alto do morro. Depois disso fica meio difícil de explicar. Quando você chegar lá, é melhor perguntar para alguém".
A idéia de perguntar a outras pessoas não me soou muito promissora. Mas consegui, com alguma dificuldade, convencer o sujeito a dirigir até o lugar e deixar que eu o seguisse. Foi o que fizemos.
Neste ponto, vou cobrir meu rastro. Digamos apenas que, depois de um longo percurso de carro e de um longo trecho de estrada que o degelo repentino transformara em barro até a altura das calotas, a picape parou diante de uma entrada para carros diante da qual havia a única caixa de correio em toda aquela estrada que não ostentava nenhum nome.
Desci do carro e fui até a cabine da picape.
"É esta?", perguntei ao senhor idoso.
"Essa mesma", respondeu, fazendo um gesto em direção à entrada, um caminho que subia por uma encosta de colina até uma casa quase totalmente oculta por árvores -uma casa no alto de uma colina que, como se podia perceber mesmo desde lá embaixo, muito provavelmente daria aquela proverbial "vista para cinco Estados".
"Você tem certeza disso?", perguntei.
Ele assentiu e esperou um pouco, com ar ligeiramente protetor, para ver o que eu iria fazer. Parecendo concluir que eu realmente não pretendia invadir a casa de Salinger, ligou o motor da picape e foi embora.
É claro que existe uma pequena possibilidade de que ele fosse um dos integrantes do esquadrão ambulante de desinformação sobre Salinger, imbuído especificamente de dar orientações erradas a estranhos à procura de Salinger, levando-os a um falso endereço já conhecido. Mas essa hipótese recendia a uma paranóia mais pynchonesca do que salingeriana.
Procurei outros sinais identificadores. A entrada para carros que descrevia uma curva, subindo até a casa protegida pelas árvores, correspondia às descrições feitas por peregrinos anteriores.
A existência de uma segunda e mais velha construção no terreno correspondia aos relatos segundo os quais Salinger teria construído uma nova estrutura no final dos anos 60, após um divórcio.
Não vi uma muralha física, mas fiquei sabendo, posteriormente, que, quando Salinger ergueu a nova casa em seu terreno, a velha muralha foi substituída pela muralha de árvores, agora alta, que protegia o lugar.
Tive bastante certeza de que o lugar era esse mesmo.
Presumindo que essa fosse a residência de Salinger, presumindo que eu tivesse o alvo certo em minha mira, quais eram minhas opções? Eu poderia:
1) Violar a placa de ENTRADA PROIBIDA, cruzando as regras prévias que eu mesmo traçara para minha ação, atropelando a paz de Salinger, subindo pela entrada e batendo na sua porta. Mas eu não poderia fazê-lo. Lembrei a expressão de pessoa caçada, invadida, violada, no rosto de Salinger quando um paparazzo o pegou de surpresa, quase dez anos atrás.
Don DeLillo me contou que foi a visão dessa foto, do rosto assustado de Salinger, que o inspirou a escrever "Mao 2", sua reflexão sobre um escritor recluso e o terror da celebridade.
Eu já me sentia mal pelo simples fato de estar ali, sentia que minha presença diante de seu portão já era uma espécie de violação cármica pela qual eu teria que pagar com várias vidas futuras desagradáveis.
Eu não poderia dar esse passo. Não poderia bater em sua porta.
2) Ficar esperando o suficiente para, quem sabe, topar com Salinger entrando ou saindo de casa. Seria o equivalente a rastreá-lo ou agarrá-lo na porta de casa, como dizem os tablóides britânicos. Eu não poderia fazê-lo.
3) Simplesmente absorver o silêncio que cercava a residência de Salinger. Prestar minha homenagem silenciosa à muralha e ir embora. Quando eu confiara a Jonathan Schwartz minha hesitação em realmente ir até a casa de Salinger, ele havia feito pouco caso.
Me contou que havia pensado muitas vezes nisso. Ele não hesitaria em bater na porta, "só para respirar o mesmo oxigênio" que Salinger.
Assim, inspirei o oxigênio do início da primavera e me afinei com os sons do silêncio de Salinger, com o som de um riacho turbulento de neve derretida que escorria pela encosta abaixo, da casa de Salinger até a estrada.
Ouvi o canto de um pássaro distante. Depois o som melancólico do vento passando pelas árvores de Salinger.
Um homem passou pela estrada, levando seu cachorro para passear.
"Esta é a casa de Salinger, não é?", perguntei.
Ele sorriu, mas disse: "Não posso responder".
Escutei o silêncio. A presença silenciosa de Salinger é como um "koan" não dito, uma pergunta que nos obriga a questionar a nós mesmos.
Meditei sobre o silêncio de Salinger, sobre a ausência dele em minha vida, sobre todas as outras ausências em minha vida.
Comecei a ficar muito triste; comecei a sentir a tristeza de Salinger, sua tristeza e compaixão por um mundo repleto de almas não iluminadas, como a minha.
Mas depois pensei no célebre trecho sobre a Mulher Gorda em "Franny e Zooey". Você se lembra: é aquele em que Franny, a supersensível, espiritualmente obcecada irmã menor do guru morto Seymour, sofre um colapso nervoso porque não aceita o discurso insensível e hipócrita das pessoas incultas que a cercam no colégio caro onde estuda.
Ela quer se retirar do mundo, encontrar uma comunhão pura com Jesus por meio da oração incessante, tão incessante que, depois de algum tempo, se transforma na voz pura e silenciosa do coração.
Zooey, um de seus irmãos, a arranca de sua crise espiritual, lembrando-a da Mulher Gorda. Quando eles todos eram celebridades dos "quiz shows" e se cansaram de se apresentar para a multidão de patetas que compunham sua audiência, Seymour, o santificado, lhes dizia para fazê-lo "pela Mulher Gorda".
E cada um deles pensava em alguma senhora obesa que estava ouvindo rádio, talvez sentada na sua varanda, matando moscas, enquanto ouvia o programa.
Não despreze essas pessoas, lhes disse Seymour, façam o programa por amor à Mulher Gorda. "Mas vou lhe contar um segredo terrível", diz Zooey a Franny. "Não há ninguém aí fora que seja a Mulher Gorda de Seymour... Você não sabe quem é a Mulher Gorda, na verdade? É o próprio Cristo, ele mesmo."
É um sentimento belo: amar todas as pessoas que vivem no planeta, por mais estranhas que sejam para nós, por serem uma encarnação do divino. Mas será que Salinger não rejeitou esse sentimento quando retirou-se do mundo, desdenhando o contato com os fãs -possivelmente tolos- que amam suas obras, fugindo das maneiras excessivas, desajeitadas pelas quais o mundo expressa seu amor por um escritor?
Não estará Salinger, como Franny, desprezando a Mulher Gorda? E eu, aqui diante do portão de sua casa, não sou, de alguma maneira, a Mulher Gorda? Não deveria Salinger me amar, me dar as boas-vindas, como à Mulher Gorda?
Ouvi a Muralha do Silêncio. E decidi que não bastaria só ouvir. Optei por uma quarta via. Eu escreveria uma carta a Salinger e a deixaria em uma de suas caixas de correio.
Fácil dizer -mas depois desse tempo todo, desses anos todos, o que eu tinha a dizer a Salinger? O que você, caro leitor, diria, se tivesse a chance de se comunicar com o estranho, silencioso, espiritualizado artista que se esconde atrás da muralha, a última pessoa privada nos Estados Unidos?
Decidi que precisava de um dia para refletir sobre o assunto. Fui me hospedar num hotel nas redondezas (cujo proprietário me contou que Salinger havia feito uma festa de aniversário de casamento ali, dois anos antes, com sua terceira mulher).

LEIA a última parte dessa reportagem amanhã na Ilustrada

Tradução Clara Allain

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