São Paulo, sexta-feira, 7 de novembro de 1997
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GLAUBER ROCHA, ESSE VULCÃO

Nosso cinema é novo porque o homem brasileiro é novo e a problemática do Brasil é nova e nossa luz é nova

A estratégia do cineasta novo era a criação de "filmes baratos, explosivos, bárbaros, radicais, antinaturalistas e polêmicos"

Gritávamos. Miguel não quis mais ler o manifesto. Virou piada. Ficou conhecido como o Manifesto Bola-Bola

Glauber, no entanto, não gostava quando lhe atribuíam papel preponderante nos rumos do cinema novo

Glauber sentiu que seus projetos sobre cinema não poderiam ser desenvolvidos na Bahia pelo acanhamento do meio, apesar do clima cultural favorável de Salvador.
Com as suas primeiras experiências já concluídas, armazenando conhecimentos que lhe advieram através das leituras teóricas e do exercício da crítica, sentia-se capacitado para mais ousadas conquistas. No início da década de 60, as dificuldades de comunicação entre Salvador e o Rio de Janeiro ou São Paulo eram consideráveis, isolando-o de contatos que precisava intensificar.
Além disso, havia a necessidade de suporte financeiro para a realização de filmes, com o que não poderia contar na Bahia. Por isso, resolveu mudar-se definitivamente para o Rio, em 1962.
Em 1957 e 58, conforme depoimento que deixou do próprio punho, costumava reunir-se no Rio com um grupo de jovens "mal saídos da casa dos vinte", integrado por Miguel Borges, Cacá Diegues, David Neves, Mário Carneiro, Paulo César Saraceni, León Hirszman, Marcos Freire e Joaquim Pedro de Andrade, "para discutir os problemas do cinema brasileiro. O objetivo das reuniões era o de transferir para o cinema a fermentação que já se registrava no teatro, na literatura (agitada pela pregação dos concretistas e demais vanguardas), nas artes plásticas e na arquitetura, em evidência mundial pela construção de Brasília e pelo prestígio de Oscar Niemeyer.
Ainda em Salvador, Glauber já havia conhecido Paulo César Saraceni, que no final da década de 50 passara alguns dias na cidade, e Nelson Pereira dos Santos, a quem foi apresentado pelo homem de cinema e grande realizador das jornadas cinematográficas de Salvador, Guido Araújo, durante as filmagens de "Mandacaru Vermelho".
Numa viagem ao Rio, Glauber já havia acompanhado algumas locações de Nelson Pereira dos Santos na produção de "Rio Zona Norte", interessando-se particularmente pela prática da direção.
O grupo, precursor do cinema novo, reunia-se em bares do Catete, Copacabana, centro do Rio (no Amarelinho Glauber conheceria Cacá Diegues), e discutia muito, cada qual debatendo as suas preferências e as influências recebidas, que iam desde Eisenstein de Encouraçado Potemkin até o neo-realismo de Rossellini, passando por Buñuel, Fellini, Visconti, John Ford, Godard, etc., entre os mais citados.
O que saía dessas discussões? Não muito, como o reconheceria o próprio Glauber, ao confessar: "Tudo era confuso." Na verdade, porém, elas começavam a definir caminhos e lançar sementes, que logo floresceriam na realidade do cinema novo. Também muito contribuíram para criar o espírito de corpo que caracterizaria o movimento. Se ainda não estavam muito nítidos os rumos, naquele momento de transição entre duas décadas culturalmente significativas e de muita instabilidade política, pelo menos os membros do grupo já sabiam o que desejavam. Como sempre, Glauber, que foi o porta-voz das aspirações que cresciam, pôde assim sintetizá-las, num artigo de 1962: Nós não queremos Eisenstein, Rossellini, Bergman, Fellini, Ford, ninguém. Nosso cinema é novo não por causa da nossa idade (...). Nosso cinema é novo porque o homem brasileiro é novo e a problemática do Brasil é nova e nossa luz é nova e por isso nossos filmes nascem diferentes dos cinemas da Europa.
Mais adiante, num trecho de grande afirmação, ele definia com objetividade os propósitos do grupo:"Nossa geração tem consciência: sabe o que deseja. Queremos fazer filmes antiindustriais; queremos fazer filmes de autor, quando o cineasta passa a ser comprometido com os grandes problemas do seu tempo; queremos filmes de combate na hora de combate e filmes para construir um patrimônio cultural.
Desde o início, pois, Glauber se transformaria no menor e teórico dos objetivos da sua geração, consolidando idéias que ainda estavam dispersas, mas que convergiam para um ponto comum, ou seja, um projeto de renovação, qualidade estética e brasilidade.
Filmar o Brasil com técnicas novas, que desnudassem a sua realidade mais profunda e dramática, aquela que costumava ser embelezada e maquiada para passatempo das elites. Orgulhoso, Glauber proclamaria depois que "na América Latina não existe um cinema como o nosso" (ele já se havia dedicado, em outros artigos, a analisar a questão cinematográfica em países como o México, a Argentina, Cuba, Peru, etc., para, numa frase fundamental, definir: "Para nós a câmera é um olho sobre o mundo".
No Brasil e na América Latina o cinema deveria ser "empenhado, didático, épico, revolucionário". Um cinema sem fronteiras, de língua e problemas comuns, que levasse todas as experiências no sentido de educar o espectador e analisar a realidade do país.
A estratégia do cinema novo era a criação de "filmes baratos, explosivos, bárbaros, radicais, antinaturalistas e polêmicos (5), tais como os que ele próprio realizou, sobretudo a partir de Terra em transe, esse misto de cinema e de ópera, filme que incorpora algumas das mais belas sequências de imagens da história do cinema e no qual Glauber exercita, na plenitude dos seus dotes de cineasta, a capacidade de metamorforização da realidade brasileira (no caso, a melancólica realidade política, repleta de oportunistas e falsos líderes).
O início da vida de Glauber no Rio de Janeiro foi facilitado pelos contatos que ele já levava da Bahia e pela ressonância nacional (nos círculos especializados) da sua atividade de ensaísta (sobretudo no Suplemento Dominical; do "Jornal do Brasil", o SDJB) e do êxito de Barravento. No particular, foi de grande importância o fato de ele ter conhecido ainda em Salvador Nelson Pereira dos Santos e Paulo César Saraceni, que coincidentemente se encontrava na capital baiana durante as filmagens de Mandacaru vermelho.
Costumavam reunir-se na pensão de dona Lúcia para conversar sobre cinema e combinar planos futuros. As preocupações dos três com a eficiência da técnica, a serviço de filmes artisticamente mais bem acabados do que aqueles que constituíam a tradição do cinema brasileiro, desciam a detalhes tais, que podiam levar toda uma tarde questionando a colocação adequada da câmera. Glauber defendia o ponto de vista de que a movimentação da câmara era fundamental a fim de que criassem "uma forma nova para um conteúdo novo".
Discussões desse tipo se intensificaram com a ida de Glauber para o Rio, varando as madrugadas nos bares e restaurantes onde o grupo se reunia, entre os quais o Alcazat, em Copacabana, e no chamado bar da Líder, este último por ficar defronte da empresa do mesmo nome, em Botafogo, a preferida pelos realizadores do cinema novo para as montagens dos seus filmes (6). Era um ponto de encontro obrigatório no início dos anos 60 para quem quisesse fazer cinema no Brasil, muito frequentado também por intelectuais de esquerda, escritores e belas mulheres. O Rio atravessava uma fase de ebulição cultural, que se intensificara a partir do final da década de 50, com o Suplemento Dominical do "Jornal do Brasil" constituindo-se num fator de aglutinação dos jovens escritores e artistas que desejavam renovar a cultura brasileira.
Era um veículo a serviço da difusão do novo e por isso se fizera o porta-voz das tendências de vanguarda da literatura brasileira, notadamente do neoconcretismo, que acrescentava a linha carioca ao movimento que se iniciara em São Paulo com Décio Pignatari e os irmãos Campos, Augusto e Haroldo, ao lado das experiências da "Poesia Praxis" de Mário Chamie. Os debates sobre cinema não se restringiam aos bares da moda, que reuniam não apenas os interessados no projeto do cinema novo, mas, igualmente, jovens cineastas de outras tendências, inclusive da PUC e de grupos que depois se arregimentariam em torno do Centro Popular de Cultura (CPC).
A vinculação da turma do cinema novo com o pessoal que fazia o SDJB começava a estreitar-se. Ainda em 1959, Glauber, que tinha ido ao Rio em companhia de Helena Ignês, teria a oportunidade de exibir Pátio (ao lado de Caminhos, de Paulo César Saraceni), na casa de Lígia Pape, para um público constituído de Mário Pedrosa, sua filha Vera, poeta em evidência e ela própria, pela sua beleza, musa dos intelectuais, Ferreira Gullar, Reinaldo Jardim, Amílcar de Castro, Hélio Oiticica, Décio Vieira e Jean Bouguit, entre outros. Foi nessa reunião que surgiu a idéia de escrever-se um manifesto expondo os objetivos do cinema novo, que seria publicado no Suplemento do JB por Reinaldo Jardim. Pensou-se, inicialmente, na pena forte e nas idéias audaciosas de Glauber, já conhecidas dos leitores cariocas. Mas, afinal, o escolhido para a redação foi o cineasta Miguel Borges. O documento era considerado de importância para congregar novos adeptos e espalhar a idéia de cinema novo pelo Brasil inteiro. Manifestos definindo propósitos artísticos de renovação estavam em moda naquela época, dando sequência, aliás, a uma tendência que vinha da Semana de Arte Moderna e do modernismo de 22, herdeiros, por sua vez, das práticas das vanguardas européias, intensificadas com o dadaísmo, o futurismo, o surrealismo, etc.
O manifesto do cinema novo deveria servir também para remover certas discordâncias em relação à prática cinematográfica e unificar grupos divergentes (ou pelo menos ainda não identificados no desejo de uma ação comum). Glauber e Paulo César Saraceni já tinham produzido os seus primeiros curtas-metragens experimentais, havia o pessoal da PUC, como David Neves e Cacá Diegues, que difundiam suas idéias através de um órgão chamado Metropolitano, envolvido em polêmicas, surgia o interesse de outros nomes como Fernando Duarte, Paulo Perdigão, Marcos Farias e Joaquim Pedro de Andrade, em suma, o clima era propício a uma tentativa de congregação partida de um manifesto -que acabou não havendo, ou melhor, morreu numa iniciativa frustrada, conhecida como "Manifesto Bola-Bola". Em suas memórias, Paulo Saraceni narra o episódio:
Onze horas da noite estávamos no Alcazar, esperando o texto de Miguel Borges. Havia um ar de coisa histórica. Miguel Borges começou:
Não queremos mais cinema-literatura. Não queremos mais cinema-escultura. Não queremos mais cinema-música. Não queremos mais cinema-dança. Não queremos mais cinema-teatro. Queremos cinema-cinema.
Aí, eu pulei -todos estávamos espantados com um começo de manifesto que pretendia reinaugurar o cinema brasileiro. Aquilo era ridículo.
Vamos ouvir o fim do manifesto -gritavam.
Não quero ouvir mais nada -eu disse. Isto é manifesto dos anos 20, do cinema mudo. Pretensioso, nem Eisenstein assinaria. Ridículo. Parece o filho pedindo para o pai: Quero uma bola. Não uma bola de futebol, não uma bola de basquete, não uma bola de vôlei, não uma bola de pingue-pongue. Quero uma bola-bola!
Aí o pau comeu, todo mundo falava ao mesmo tempo. Gritávamos. Miguel não quis mais ler o manifesto. Virou piada. Ficou conhecido como o Manifesto Bola-Bola. O movimento nasceu em 1959 com um manifesto frustrado.
Frustrou-se o manifesto, mas não o nome do movimento, que seria consagrado pelo crítico Ely Azeredo e surgia "não como escola acabada", mas sim como uma operação "que se faz, se processa, se desenvolve à medida que se realiza", enfim, como algo dinâmico e em mutação permanente, como o definiria o próprio Glauber. Foi ainda em 1959 que ele conheceu Cacá Diegues, então redator-chefe do Metropolitano e frequentador das sessões cinematográficas da cinemateca do Museu de Arte Moderna do Rio, dirigida por Moniz Viana. Ali, após a exibição de filmes, fomentavam-se reuniões e debates com grupos de diferentes tendências (PUC, Faculdade de Filosofia), reunindo nomes como os de Arnaldo Jabor, David Neves, Leon Hirzsman, Joaquim Pedro de Andrade, Miguel Borges, Saraceni, o fotógrafo Mário Carneiro e, naturalmente, o próprio Cacá Diegues e Glauber Rocha. A esses nomes juntavam-se os de Nelson Pereira dos Santos, Paulo Gil Soares, Roberto Pires e Gustavo Dahl, frequentadores de bares como o Vermelhinho, Fiorentina (ponto de encontro de artista de cinema) Alcazar e, naturalmente, o bar da Líder, em Botafogo.
O cinema novo, porém, não surgiria como algo de articulado durante essas reuniões. Era apenas uma idéia que ia brotando espontaneamente ao longo da convivência, impulsionada por Glauber, de todos o mais entusiasmado e consistente teoricamente.
Não é crível que o cinema novo não houvesse existido sem a presença de Glauber Rocha. É indiscutível, porém, que ele, tal como ocorreu com os movimentos mapaejogralesca, no Central, iria constituir-se no elemento de aglutinação de todo o grupo, seu eixo, sobre ele exercendo a capacidade de liderança que lhe parecia congênita.
Para formá-la, muito contribuíram o seu dinamismo pessoal (ele possuía tanta energia que jamais dava demonstrações de cansaço ou desânimo), o seu permanente otimismo (incólume mais ou menos até os 30 anos) e, sobretudo, o fascínio do seu poder verbal, enriquecido por um raciocínio rápido e dialético.
O conjunto dessas qualidades tornou-o o líder natural do grupo, a ponto de ter ficado famosa uma frase atribuída a Nelson Pereira dos Santos, segundo a qual "cinema novo é quando Glauber se encontra no Rio".
É claro que se trata de uma "boutade", de uma homenagem brincalhona e amigável, mas não deixa de expressar uma verdade de que todos partilhavam.
Sentiam-se meio órfãos e perdidos quando Glauber estava longe, e foi por isso que a sua morte provocou em muitos deles uma sensação de desorientação e vazio ainda hoje perceptível, quando depõem sobre o amigo desaparecido.
Gustavo Dahl, numa carta de junho de 1967, traduziu bem o sentimento do grupo diante das ausências de Glauber, em suas numerosas viagens: "O Rio é triste sem ti" -escreveu.
Glauber, no entanto, não gostava quando lhe atribuíam papel preponderante nos rumos do cinema novo. Na entrevista concedida a Federico de Cárdenas e René Capiles, "O Transe da América Latina", em 1969, negando que quisesse abrir caminhos com os seus filmes para o cinema latino-americano, negava também qualquer pretensão de liderança. Disse:
"Havia um crítico que escrevia que meus filmes são caminhos para o cinema da América Latina. Sou contra isso e me parece absurdo, tal como quando se diz que sou o líder, o porta-voz, o teórico do cinema novo.
Não sou nada. O cinema novo é um movimento de organização e ação, de produção econômica.
É uma distribuidora chamada Difilme e outra chamada Mapa. Culturalmente cada cineasta faz o seu, os filmes do cinema novo são inteiramente diferentes uns dos outros.
Evidentemente, os cineastas que formamos o movimento temos pontos de vista comuns de interesse estético, artístico ou cultural, mas os filmes de cada um são diferentes. E não existe tal ou qual tendência predominante.
Eu não sou porta-voz em teoria alguma. Procuro meu caminho como creio que qualquer cineasta latino-americano, complexo e diversificado".
Há um aspecto que logo se destaca quando passamos a estudar o comportamento dos integrantes do cinema novo: não os ligavam apenas interesses profissionais. Agiam com consciência de coletividade, exprimindo um sentimento de coesão que não é comum encontrar no campo da criação artística, normalmente fracionado por ciúmes, disputas, invejas e rivalidades. É isto, sem dúvida, que provoca no pesquisador a idéia de que costumavam sempre discutir os seus projetos em conjunto, como se tivessem um programa coletivo a cumprir.
Embora, obviamente, isto não tenha acontecido, a filmografia de cada qual é marcada por preocupações convergentes, ressaltando o objetivo de usar o cinema para estudar a realidade brasileira, além de zelar pela qualidade estética da linguagem e colocar em segundo plano interesses comerciais.
Essa solidariedade fica patente quando estudamos a atuação e as ações do grupo.
Eles buscavam ajudar-se mutuamente. Numa carta a Glauber, escrita de Paris em 30 de dezembro de 1967, Cacá Diegues revelava ter tido informações dos problemas enfrentados pela produtora e distribuidora Mapa e queria ajudar os companheiros.
Dizia: "O fundamental é Walter Lima Júnior fazer o filme dele, mas acho que todo mundo deve ajudar a Mapa a sair da enrascada. E ajudar o Zelito também, que afinal é um cara que está dedicando a vida dele ao cinema novo e que foi uma peça importante para 'Terra em Transe' (...).
O que eu quero dizer é isto: se a barra estiver muito pesada mesmo, mexa com os meus $$$$ se houver, que quando eu chegar acertamos."

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