São Paulo, sexta-feira, 7 de novembro de 1997
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Droga e exclusão social

AURO DANNY LESCHER

O tema das drogas é atravessado caleidoscopicamente por múltiplas inscrições: desejantes, institucionais, ideológicas, socioculturais, políticas etc. É necessário saber que há vários "usos" de substâncias psicoativas ao longo da história da humanidade e que uso e dependência são situações absolutamente diferentes.
A clínica da dependência é a clínica da privação de liberdade. A toxicomania é um buraco negro que suga violentamente a criatividade, que escorraça a subjetividade em direção a intensos conflitos. O corpo perde potência e superfície; vai se "encasulando" dentro dos limites da própria pele. Um corpo oprimido e fissurado.
Consideremos como exemplo o consumo de crack em São Paulo por crianças e jovens em situação de rua. O componente perverso, porque escravizante, de sua comercialização é circunstância quase inevitável no circuito da miséria. Explica-se, pois, a facilidade com que uma criança que pipa crack na praça da Sé larga a "dependência" quando lhe é garantido lugar para dormir, comer, criar e trocar afeto de forma sustentada ao longo do tempo. Criança que empina pipa não pipa pedra.
O crack em São Paulo é questão de doença pública. Expressão cruel de uma contemporaneidade cruel, repleta de frágeis soluções e de falsos problemas. Não se trata de clínica ou tratamento, mas de ética e humanidade.
Dos riscos, o que mais preocupa, pela arbitrariedade e truculência, é o de medicalizarmos uma questão social. Se nos referirmos aos jovens em situação de subumanidade, aprisionados no crack, como toxicômanos, correremos o risco de interná-los -compulsoriamente- em dispositivos institucionais, de altíssimos muros e voraz vigilância, para tratar quem não deseja tratamento e privar de liberdade quem sofre com o crack e com as limitações que a própria miséria impõe, além de fracassar, obviamente, nos objetivos de tão obtusa intervenção.
Há muitos trabalhos já consagrados pela mídia, e tantos outros ainda sem visibilidade, que são, evidentemente, alternativas muito mais eficazes e justas no resgate de dignidade e leveza, tão fundamentais à criança e ao jovem. Das "socioeducativas" às ético-estéticas.
A estridência desse grito das grandes cidades é o timbre de uma reivindicação que exige reflexão e compromisso de diversos setores da sociedade, guiados, entretanto, pelo espírito de liberdade, democracia, ética e solidariedade. Que a urgência das coisas não justifique aberrações na cidadania.

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