São Paulo, sexta-feira, 7 de novembro de 1997
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Nos EUA, se acham fórmulas para rir de tudo

GERALD THOMAS
EM NOVA YORK

Já no finalzinho de "Advogado do Diabo", Al Pacino (brilhante no papel de Mephisto) diz, sorrindo: "Posso dizer, tranquilamente, que o século 20 inteiro foi meu". Seu riso abundante substitui aquilo que, no Mephisto de Goethe, é tão sombrio. E não é à toa.
Pacino faz um Mephisto norte-americano. E os norte-americanos sempre acharam fórmulas brilhantes para rir de tudo. Riem do "peso da história", riem da fatalidade, riem do acidente, riem da tragédia, riem de sua própria superficialidade.
Esse país é, assumidamente, um adolescente. E é nessa superfície que desembarcaram milhões de "densos" Faustos e Mephistos desempregados, frustrados, autodestruídos pelas guerras. Todos desembarcam aqui para reaprender a graça das coisas.
Judeus, muçulmanos, ucranianos, escandinavos, asiáticos, o diabo a quatro, todos vieram para essa "superfície" pegar oxigênio e rir dos xeiques, dos "hitleres", dos fascistas em geral.
Aqui esses personagens históricos cedem o lugar às "supremacias irresponsáveis" dos norte-americanos, ou seja, aos "comics" (os cômicos) e todos vão brincar, atuar ("play") até o fim da festa. E, brincando, brincam de transformar os algozes da história em meros coadjuvantes nos musicais.
Enfileirados por ordem alfabética, Hitler dança com Hussein, Franco com algum faraó, elefante com filósofo, todos dançando, como um samba de crioulo doido.
É de deixar os intelectuais latino-americanos malucos. Como "tolerar" tanta irresponsabilidade, tanta "leveza" e tanto sucesso? Os intelectuais se sentem pessoalmente ofendidos, rejeitados, seu narciso quebrado. É como se suas "densas" vidas devotadas ao "entendimento" do "especiem" humano passassem a não valer nada, coitados. Daí em diante, rejeitam tudo. Reclamam da vida, do show, de quem "faz" e de quem participa. Ficam parecidos com aquele vizinho histérico batendo com o cabo da vassoura no teto para tentar interromper a festa no andar de cima.
Se pudesse, transformava logo o cabo de vassoura em arma, invadia a festa e deixava ver. Depois reinaria supremo como um pequeno fascista, feliz com sua pequena vitória.
Vale a pena dizer que a maior parte da crítica de arte do mundo nasce desse tipo de sentimento. O pior tipo de fascista é o crítico que já exerceu a liberdade artística e depois se sentiu incompetente de prosseguir desenvolvendo um discurso à altura de alguma metáfora, de rir de si mesmo.
Pior que isso, só quando passam de críticos a ministros com poder. E, uma vez no poder, censuram a piada e substituem o "show" por aquilo que chamam de "reflexão". Lembra aquele professor emburrado que manda o menino malcriado para um canto, "refletir"?
A arte, no entanto, jamais deixará de ser uma piada. Na Broadway de agora, dançam o fim trágico de um navio afundado e, em Hollywood, dança a fotogenia esquisita da década de 70. Os "densos" Faustos e Mephistos podem se enfurecer mais uma vez com a leveza norte-americana.
Falta de reflexão? De forma alguma. Mas uma reflexão bem-humorada, capaz de muita auto-ironia (como isso faz falta no Brasil, não?). Por exemplo, Courtney Love, pouco tempo após a morte trágica de seu marido, Kurt Cobain, transformava sua vivência em personagem, vivendo na tela a mulher de Larry Flint.
Paralelamente com sua "recuperação" perante a sociedade, Courtney Love construía uma piada em vários níveis. Aparecia em público "regenerada", bem vestida, cara saudável, enquanto retratava na tela -crítica e ironicamente- alguém que levou o vício das drogas às últimas consequências, ou seja, ela mesma.
Quem ria mais que Courtney Love no dia da estréia? Ninguém. O público ria junto. O narciso norte-americano estava vingado.
Será que essa "leveza" é tão difícil de engolir? Será que a história "oficial" terá de ser, sempre, uma história ranzinza? Será que a política e o exercício do poder serão sempre fruto de um processo pessoal de rejeição, de incompetência?
Será que os pequenos ditadores, os xenófobos, os medíocres nacionalistas vão sempre tentar reescrever a história, procurando acomodar seus interesses e a ridícula espessura de seus dedos mindinhos apontando furiosamente para aqueles que tiraram a vida, e seus mistérios, de letra? Lacan é uma piada. Duchamp é uma piada. Warhol é uma piada. Esther Williams, Gene Kelly, Super-Homem, Ronald Reagan, todos, uma piada. Os faraós dançantes, a dança sincronizada na piscina, isso tudo é uma piada.
Mas, se o sucesso da América parece realmente ser uma ofensa pessoal, o fracasso da amargura não haveria mesmo de ser elogio para ninguém. Não poder rir da história e de si mesmo pode ter tristes consequências.
A história é triste? Sem dúvida. Mas ainda assim é melhor manter o humor, a leveza e fazer como John Woo, chinês colonizado pelos ingleses, que desembarcou aqui para rir de sua história. E o que é ainda melhor: ele o faz ativamente, por meio da arte que abraçou, o cinema.
Questionado sobre seu nome "verdadeiro", Mephisto/Pacino/América responde, generoso: "Nesses dois milênios de existência, já tive tantos nomes, tantos disfarces". Num diálogo que faz naufragar de vez o barroquismo europeu (que ainda contagia intelectuais do Hemisfério Sul), ele responde: "É inútil. Tentei de tudo. Nos últimos 500 anos tenho me dado bem com o título de 'papai'. Just call me dad".

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