São Paulo, sexta-feira, 7 de novembro de 1997
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Leitor, não procure seguir meu exemplo

RON ROSENBAUM
DA "ESQUIRE"

No hotel, conferi minha secretária eletrônica e encontrei um recado angustiado de Jonathan Schwartz sobre um ataque que acabava de ser publicado a Salinger -na verdade a "Hapworth", mas estendendo-se a toda a obra de Salinger referente aos Glass- por um crítico importante.
Jonathan tinha certeza de que Salinger iria ler a crítica; ele o vê como sendo muito ligado ao mundo literário, apesar da impressão de desapego espiritual que transmite -ele me lembrou de que quando sua amiga, acompanhada do filhinho de cinco anos, havia assistido a "Monkey Business" com Salinger, a amiga observara pilhas de exemplares da "The New Yorker" e do "New York Times" na casa.
Jonathan acha que, devido às preocupações espirituais de Salinger, muitas pessoas deixam de perceber as mordazes observações cômicas de coisas mundanas que figuram em seus trabalhos.
Ele temia que o ataque deixaria Salinger amargurado e o convenceria a mudar seus planos de deixar "Hapworth" (e talvez ele mesmo) sair para o mundo outra vez.
Decidi que talvez o que eu devesse fazer, na carta que estava esboçando a ele, seria -à minha própria maneira, restrita pelos limites do ego- tentar "aliviar sua dor". Uma espécie de mensagem homeopática: uma mensagem de um único estranho ao homem que temia a grande massa de estranhos. Digo "restrita pelos limites do ego" porque o método que escolhi não pode ser qualificado como isento de vaidade pessoal. Acho que, em cada peregrinação feita a Salinger, existe a crença subjacente de cada peregrino de que ele, melhor do que qualquer outro, compreende o objeto de sua peregrinação -e a esperança concomitante de que Salinger possa reconhecer esse fato, validá-lo. De que ele, de algum modo, reconheça que você, em meio a todas as outras pessoas, penetrou o cerne do mistério. Finalmente encontrei alguém que me conhece!
Isso vem de encontro com minha própria vaidade com relação a meu talento na exegese literária. Assim, comecei a compor, num bloco de papel amarelo, uma carta que começava num tom "aliviar sua dor", mas em pouco tempo, reconheço, passava a implorar seu reconhecimento.
"Caro senhor Salinger", comecei. "Espero que o senhor não se incomode se eu lhe transmitir a seguinte apreciação de seu conto 'Hapworth' -eu pretendia incluir no envelope um ensaio explanatório sobre "Hapworth" que eu havia publicado pouco tempo antes na 'The New York Observer"'.
Continuava com "Achei que o senhor poderia se divertir com a conjetura que fiz a respeito do som de uma mão batendo palmas...".
É aqui que minha vaidade, muito pouco zen, se manifesta. Era mais do que uma conjetura: eu achava que tinha encontrado a resposta certa para aquele "koan" aparentemente irrespondível, sobre uma mão batendo palmas. É que certa vez eu havia conversado sobre isso com um sujeito que passou sete anos num mosteiro zen. Ele me contou o que afirmou ser a resposta espiritualmente "correta" à pergunta, a resposta que uma pessoa espiritualmente iluminada daria espontaneamente se fosse realmente iluminada.
Quando o mestre indagasse: "Qual é o som de uma mão batendo palmas?", o iniciado iluminado saberia não responder com palavras, mas, em solenemente, erguer uma mão lateralmente e trazê-la em direção ao centro do peito, como se ela fosse se encontrar com a outra mão para bater palmas.
O som de uma mão batendo palmas é o som daquela onda silenciosa, o som de uma ausência, a ausência do som normalmente produzido pela colisão de duas mãos. O som de uma mão batendo palmas é o silêncio que ouvimos nessa ausência, o silêncio ressonante do resto da criação, a imensa unidade do ser que absorvemos na ausência daquele bater que estreita nossos horizontes.
Esse "koan" sobre o som de uma mão batendo palmas aparece, é claro, como a epígrafe da abertura da primeira coletânea de Salinger, "Nove Estórias".
Minha vitória exegética foi a descoberta de que se você for até a primeira página do texto e começar a ler "Um Dia Ideal para os Peixes-Banana", a famosa história do suicídio de Seymour Glass, você vai encontrar uma imagem espantosa, uma imagem secreta e surpreendente do som de uma mão batendo palmas, embutida ali mesmo. Ela está ali, na descrição da mulher de Seymour, Muriel, secando o esmalte das unhas no quarto de hotel em que o casal está hospedado, de frente para o mar, na Flórida. Está ali na descrição que Salinger faz de Muriel balançando a mão, "sua mão esquerda -a molhada- para frente e para trás no ar", para secar as unhas. Fazendo o gesto de uma mão batendo palmas.
Tenho certeza de que sou o único que compreendeu essa imagem. Na carta que escrevi a Salinger, à mão, eu dizia: "Você vai notar como expressei minha admiração por sua capacidade, naquela imagem, de 'introduzir o som, o gesto espiritual, do silêncio na cacofonia de nossa cultura cosmética"'.
Concluí dizendo a Salinger que eu estava escrevendo um artigo elogiando a arte e o exemplo de seu silêncio, e que, se ele por acaso tivesse algo que quisesse me comunicar (por exemplo, "Sim, Ron, você é o único que me entendeu"), me sentiria honrado em ouvi-lo.
Seria minha mensagem o produto de motivos mistos, tanto altruístas quanto egoístas? Sim, com certeza. Mas eu nunca pretendi afirmar que fosse espiritualmente tão avançado quanto Salinger. E eu dei mostras de contenção; afinal, não usei seu número de telefone.
Na manhã seguinte, bem cedo, retornei à entrada da casa de Salinger. Encontrei o jornal de domingo dobrado dentro da caixa de correio marcada "Valley News". Pus minha carta e meu ensaio sobre "Hapworth" e uma mão batendo palmas num envelope e os deixei na caixa de correio. Parei por um momento para apreciar o silêncio, depois fui embora para tomar café num bar na vizinha cidade de West Lebanon.
Eu poderia ter saído da cidade naquele momento. Talvez devesse tê-lo feito. Mas, em lugar disso, resolvi voltar. Expliquei minha volta a mim mesmo, dizendo que eu estava retornando apenas para ver se a carta tinha pelo menos sido apanhada, juntamente com o jornal. E, de fato, quando cheguei ao lugar outra vez, o jornal havia sumido e o envelope com minha carta, também. Missão cumprida.
Novamente, deveria ter ido embora naquele momento. Mas havia uma espécie de magnetismo naquele lugar. A muralha invisível de Salinger o possuía. Era seu lugar.
Desde que Salinger permanecesse invisível ali no final da entrada para carros, por trás das placas de ENTRADA PROIBIDA e da caixa de correio sem nome, não importava realmente se era sua casa ou não. Eu poderia render homenagem à invisibilidade silenciosa de Salinger em qualquer lugar onde ele estivesse invisível.
Mas pensei em fazer um gesto final antes de tomar o caminho de casa, render uma última homenagem à presença ou ausência silenciosa de Salinger.
Eu faria o som de uma mão batendo palmas. Assim, voltado para a casa, dei o aceno silencioso de uma mão só. Me sintonizei com o ressonante, silencioso som da criação que envolvia a mim e a Salinger, em todos os cinco estados do ser. Fui o "Apanhador na Entrada para Carros".
E então, para horror meu, ouvi outro som -de um carro sendo ligado, um carro descendo a entrada de carros em minha direção!
Estaria Salinger dirigindo? Minha vida inteira passou diante de meus olhos um instante. Eu havia imaginado Salinger lendo minha carta e minha apreciação do aceno de Muriel com uma mão só, dizendo silenciosamente a si mesmo: "Até que enfim. Alguém que verdadeiramente me entende, que entende meu trabalho".
Mas eu não imaginara Salinger me flagrando diante de seu portão, como um invasor qualquer.
O carro chegou ao final da entrada de carros. Eu estava ao lado do meu carro, uns seis metros à direita. Devido à luz, não pude ver se havia uma pessoa ou duas no carro, nem distinguir sua aparência.
O carro parou por um instante. Parecia estar tomando nota de minha presença. E, se é possível afirmar que um carro pode transmitir um sentimento de fúria, esse carro o fez. Depois saiu em alta velocidade pela esquerda, na direção contrária à minha, espalhando lama em seu caminho.
No silêncio que sobrou depois de sua partida, eu me senti terrível. Uma onda de remorso me dominou. Eu queria que Salinger me conhecesse como alguém engajado numa busca séria, alguém que o compreendia, que compreendia seu silêncio e respeitava sua privacidade silenciosa -mas alguém com quem ele talvez sentisse vontade de falar (devido às minhas percepções exegéticas, é claro). Mas agora, pensei, é inevitável que Salinger me veja como invasor, intruso. Senti que minha presença invasiva diante de seu portão poderia levá-lo a mudar de idéia sobre permitir a publicação de "Hapworth" ou de qualquer coisa -que eu, desse modo, poderia haver alterado para sempre o rumo da história literária.
Se Salinger era Punxsutawney Phil, eu era sua sombra. Ele se retiraria para dentro de sua toca, e seu silêncio invernal jamais seria interrompido. Acenei para o carro que se distanciava. Com uma mão. Me sentindo arrasado. Pelo amor de Deus, leitor, não procure seguir meu exemplo. Meu único consolo é a esperança de que eu tenha errado de casa.

Tradução Clara Allain

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