São Paulo, sexta-feira, 7 de novembro de 1997
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Gorbatchov tenta 'salvar' Lênin

CESARE MEDAIL
DO "CORRIERE DELLA SERA"

Último líder e ao mesmo tempo liquidante do comunismo, Mikhail Gorbatchov evoca a imagem mítica de Jano, o deus das duas faces: uma voltada para o passado e a outra projetada para um futuro que dá cada vez mais as costas para aquele passado. É essa a impressão que se tem folheando as suas "Reflexões sobre a Revolução de Outubro" (título da edição italiana, que será lançada em 18 de novembro).
Segundo o último secretário do Partido Comunista da União Soviética (PCUS), a revolução era inevitável.
Mas ela não foi somente uma reação à sociedade semifeudal, arcaica, que os "antagonismos de classe tinham levado a um estado de crise permanente". Pelo contrário, nos primeiros quinze anos deste século, a Rússia tinha passado por um "milagre", diz Gorbatchov: a economia tinha superado a do Ocidente, floresciam a cooperação, a instrução, as artes. Partidos e eleições começavam a entrar na consciência da população.
A experiência da história, porém, "ensina que, quando as transformações estão maduras e o poder não é capaz de administrá-las, ou a sociedade apodrece ou ela se revoluciona".
Ares democráticos
Assim Gorbatchov parece querer desmentir o lugar-comum segundo o qual a Rússia nunca respirou ares de democracia.
Ele dá muita importância ainda à revolução de fevereiro de 1917, que derrubou o czar Nicolau 2º: "tornou-se o prenúncio da liberdade", "por um breve período, a Rússia se tornou o mais livre dos países em guerra".
Parece até que Gorbatchov procura, na história russa, pontos de referência para a experiência democrática que ele iniciaria nos anos 80: o pré-guerra, fevereiro, ou mesmo os tempos de Lênin, quando, a seu ver, "no partido se conservavam ainda fortes tradições democráticas" e os anais dos congressos continham "ásperas discussões, com votações verdadeiras nos momentos de decisões".
Gorbatchov acha Outubro inevitável, mas rejeita a idéia da revolução e a fórmula de Marx, segundo a qual "as revoluções são a locomotiva da história". Ele a rejeita como "meio de resolver os problemas" e adverte: "Depois da revolução ocorrem sempre períodos de refluxo. A palavra Termidor entrou no léxico científico e político".
Com a diferença que o Termidor da Revolução Francesa (a execução de Robespierre, em 1794) pôs fim ao terror, enquanto que o soviético marcou o início do terror stalinista.
A necessidade de fazer distinções transparece a cada página. O último chefe comunista do Kremlin lembra, por exemplo, que Marx e Engels não deixaram "projetos para um futuro socialismo".
Pelo contrário, ao final de sua vida, Engels estaria convencido de que a "república democrática era a melhor forma para a edificação socialista" (assim Gorbatchov chama os "pais" do socialismo para justificar a sua perestroika).
A Rússia, porém, ao seguir o "modelo bolchevique de socialismo", errou tragicamente, escolhendo um esquema rígido, cruel, dogmático e baseado na "ditadura do proletariado", fórmula inspirada em Marx e "levada ao absurdo".
Antes da revolução, Lênin tinha escrito que "o proletariado não poderia conquistar o poder senão pela democracia". Em vez disso, a "ditadura do proletariado, praticamente desde o começo, e sobretudo com Stálin, significou uma ruptura total com a democracia".

Outro rumo
As reflexões de Gorbatchov revelam o objetivo de salvar pelo menos o último Lênin da onda de condenação à Revolução de Outubro. Jano-Gorbatchov olha para trás e vê "um outro homem nos últimos trabalhos de Lênin, um homem que, depois de levar o país à revolução, percebeu ter cometido erros".
Revirando a vulgar propaganda do leninismo, Gorbatchov encontra autocríticas, vontade de pacificação, "mudanças de ponto de vista sobre o socialismo", idéias de política econômica recusadas por Stálin.
Ele deixa a entender que a aventura soviética poderia ter tido um rumo diferente se Lênin não tivesse morrido em 1924, quase sugerindo que o revisionismo e a perestroika tiveram um mesmo avô ilustre, o próprio Lênin.

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