São Paulo, sábado, 8 de novembro de 1997
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Insuficiências do direito

WALTER CENEVIVA

A lei é uma das formas pelas quais o direito se expressa. Mas a lei não é o direito. Isso parece complicado? Não só parece, mas é complicado, a contar da certeza de que nem a lei nem o direito correspondem necessariamente aos grandes valores éticos do ser humano. Cabe outra pergunta: é possível afirmar que o ser humano, considerado planetariamente, tem grandes valores éticos especificáveis, comuns a todos os seres humanos?
Proponho o enfrentamento das respostas a tais dúvidas -que, diga-se, são milenares- a começar de averiguação do incontroverso significado das palavras lei, direito, valores, ética. No Brasil, a lei é toda norma genérica editada pelos Poderes Legislativo e Executivo, na esfera das respectivas competências constitucionais, contendo regras jurídicas, imponíveis aos respectivos destinatários. O leitor percebe que a descrição da lei é complicada por si mesma. Mas, querendo tentar sua definição, vá em frente.
Chegar ao significado de direito é mais difícil. É direito, na linguagem comum, o que não é torto, corresponde a uma linha reta ou o que é certo. Para as finalidades de nossa análise, a melhor definição vem de um filósofo italiano, Del Vecchio, para quem direito é a coordenação das relações interpessoais. Mas a coordenação há de ser justa. Deve compensar as deficiências dos que têm pouco, ante a largueza de meios dos que têm muito. Quando se pensa nos extremos (os que têm pouco e os que têm muito) fica fácil visualizar a coordenação, mas o tratamento da grande massa silenciosa do meio é mais difícil, em face do direito e da lei.
Paro um pouco com as definições para caracterizar lei e direito como criações culturais, seja em países como o nosso, inspirados pelo direito romano, seja naqueles em que quase tudo se situa sobre os costumes. Sendo criações culturais, a lei e o direito tendem a favorecer os que os manuseiam, isto é, as elites, qualquer que seja o sistema de governo. Nesse campo, China e Estados Unidos são iguais.
Restam, no rol das definições propostas, os grandes valores éticos. A ética apresenta, analisa, valoriza e distingue o moralmente correto mediante regras e avaliações cujos critérios justifica. A ética indica o conjunto dos valores morais através dos quais o ser humano se torna digno da estima dos que tomam conhecimento dele. Mas parece claro, na consciência coletiva, que nem a ética nem os valores morais têm muito a ver com o direito. Este, no dizer de outro pensador importante chamado Jellinek, define apenas o mínimo ético. Quando a ética tem de justificar seus critérios, observa-se que não coincidem com os do direito. É irresistível a tendência destes últimos de privilegiarem os já privilegiados, em detrimento dos outros, tanto que os não-privilegiados (de novo a grande massa) continuam na mesma posição subalterna. Os tempos modernos introduziram pequena modificação. A base dos favorecidos ampliou-se, mas, ainda assim, em proporção menor do que a dos não-favorecidos, imensamente mais numerosos.
Lembro-me agora que a cogitação desses pensamentos começou com a cotovelada do futebolista Edmundo no goleiro do Racing, da Argentina. Constatei que na vida e nos atos de certas pessoas, de individualismo exacerbado, desprovidas de consciência social, o direito -estando longe da ética- é remédio insuficientíssimo. Mas, tendo chegado ao fim de meu espaço, deixo o tema para outra ocasião.

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