São Paulo, sábado, 8 de novembro de 1997
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O cult do hífen e o mercado da cultura

ALBERTO DINES
COLUNISTA DA FOLHA

Dia Nacional da Cultura em Brasília, Encontro da Cultura Brasileira em São Paulo, 43ª Feira do Livro de Porto Alegre - depois de beirar o apocalipse durante a semana das bruxas especulativas, somos projetados ao olimpo das coisas de espírito. O país começa a descobrir sua capacidade de conviver com diferentes experiências e variadas intensidades. Apesar dos sustos, supõe-se que seja um sinal de normalidade.
Quando se fala em cultura, ocorre de imediato a famosa ameaça do marechal Goering, principal assecla de Hitler: "Quando ouço falar em cultura, fico com vontade de sacar da pistola!"
Hoje, diante de tantas definições do que seja cultura, o professor de Harvard K. Anthony Appiah, nascido em Gana, saiu-se com esta paráfrase da tirada do gordo nazista: "Hoje, quando se ouve falar em cultura, é preciso puxar do dicionário".
Estamos em plena era do multiculturalismo, espécie de vale-tudo em que as normas empresariais são chamadas de "cultura", tal como a exibição das sandálias dos senadores no saguão da Câmara Alta. Ziraldo, que é um multiartista, tantos os seus talentos, produziu um imaginoso logotipo para o mega-show paulista - pés de uma bailarina repousando em cima dos pés de um índio.
Cultura hoje está mais para antropologia do que para as humanidades e, nessa transformação, aparece irremediavelmente associada à "diversidade". E diversidade cultural converteu-se em passaporte para a modernidade. Há 20 anos, a onda era o holismo, culto do todo e da integridade. O mundo não era mundial nem globalizado e, não obstante, você se sentia magnetizado pelo conjunto, assimilado e assimilador.
Hoje, na era da fragmentação, cultura converteu-se num fascinante e frenético processo de etiquetagem e secessões. A pretexto de promover a inserção, acelera-se a exclusão, inventam-se tantos filtros, clivagens e segmentações que nada consegue manter-se intacto e integrado.
Nesta moagem cultural que se auto-alimenta nos claustros acadêmicos e se propaga através da dramatização mediática, o próprio conceito de humanismo e humanidade já não consegue existir plenamente sem algum prefixo definidor ou a complementação particularizadora. Os filósofos passaram 3.000 mil anos tentando elaborar valores absolutos para servir de paradigmas e, agora, ei-los triturados pelo afã relativista.
Vivemos sob o fio cortante do hífen -pós-modernismo, neo-liberalismo, transexualismo, pré-capitalismo, freudismo-tardio, democracia-participativa, folk-arte, ficção-reportagem, dança-acrobática, teatro-absoluto, cinema-noir, rock-pauleira, reggae-branco, pós-new wave, new-New Age, sul-Sulamericano. O travessão, outrora designado como "traço de união", diacrítico, agora sinaliza para irreparáveis polarizações.
A tal diversidade cultural produz outros fenômenos curiosos. Comecemos por estas paragens impressas: cadernos e suplementos culturais costumavam ocupar-se das sete artes. Sempre tratadas com a deferência apropriada à transcendência da vida intelectual.
Hoje, por artes do endo-marketing e do exo-marketing o magnífico "bildungsroman" de José Mindlin, "Uma Vida Entre Livros" (Edusp) é noticiado ao lado de um desfile de moda, comercial, que os lobistas convertem em fato relevante. "Júlia Mann" (Estação Liberdade), obra coletiva para lembrar a mãe brasileira dos germaníssimos Heinrich e Thomas, tem que conviver com a mais nova criação de Miguel "Sai de Baixo" Falabella.
E antes que me chamem de elitista é preciso lembrar o que aconteceu quando os bolcheviques tomaram o poder na Rússia, há 80 anos: não tiveram grandes dúvidas para optar entre "cultura-para-o-povo" ou "cultura-popular". Precisavam elevar as massas e não nivelar por baixo. Serviram-se de Tchaikovsky, Prokofieff, Kachatourian, palhaços de circo, Eisenstein, danças cossacas e corais de pastores.
O resultado da mais formidável cruzada cultural dos tempos modernos pode ser avaliado nas ruínas do império soviético: a única sobra, não degradada, é a qualidade das legiões de músicos, bailarinos, coreógrafos e cineastas espalhados pelos quatro cantos do mundo.
A resposta à globalização não é a diversidade pura e simples mas a identidade - densa, integrada, enriquecida, elaborada. E isso não se produz por meio de eventos, sejam eles de nível super, hiper ou mega. Nosso comissariado da cultura -municipal, estadual e federal- em muitos casos, deslumbra-se com a "cultura" do eventual, relegando os programas, sistemas e instituições.
Um projeto de médio ou longo prazo não causa impacto, não gera manchetes. E nessa sucessão de espasmos (hifenizados ou não), as diversidades continuam segregadas, incapazes de agregarem-se para crescer.
Muito contribui a atual política de incentivos para o financiamento da cultura. A renúncia fiscal integral em benefício de qualquer projeto considerado cultural está convertendo nossa produção artística e intelectual numa colcha-de-retalhos, sem prioridades e direção. Ao mesmo tempo, retira do erário público os recursos para objetivos permanentes, processos institucionais e infra-estruturais de longo alcance. Verificação e validação fazem-se por meio da qualidade contabilística do projeto e não dos méritos intrínsecos e qualitativos. E assim, no âmago da cultura, criamos a "cultura da contabilidade" sobrepondo-se aos critérios de conteúdo e prioridades.
Procurem nas páginas de espetáculos dos jornais o selo "Lei de Incentivo à Cultura" e confiram se nessa pulverização de recursos que, em última análise, são públicos, transparece alguma política coesa ou algo que pareça sistematizador. Se, porventura, trata-se de primeira etapa, pioneira, chegou a hora de pensar na seguinte, consolidadora.
Não podemos repassar ao "mercado" a responsabilidade de regulamentação e direcionamento que cabem à cidadania e ao poder público. Está na hora de ministrar algumas doses de intervenção, não tão drásticas como o tranco nos juros promovido pelo Banco Central, mas com alguma severidade.
Estado-mínimo ou sociedade-máxima, o importante é impedir que o mercado -esta coisa onipotente, onisciente e onipresente- transforme-se em "cult". Com ou sem hífen.

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