São Paulo, domingo, 9 de novembro de 1997
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A melancolia de uma geração

LUIS BUENO
ESPECIAL PARA A FOLHA

Em 1947 eram lançados, pela mesma editora de Curitiba, dois livros de poetas estreantes: "O Aluno", de José Paulo Paes, e "O Marinheiro", de Glauco Flores de Sá Brito. Um cinquentenário que se comemora da mais apropriada das maneiras: com a reedição das obras, e, no caso de Brito, o livro de estréia integrando a primeira coletânea ampla de sua produção, que também inclui "Cancioneiro de Amigo" (1960) e "Azulsol" (1985, póstumo).
Sobre José Paulo Paes não é preciso dizer muito: o aluno rapidamente converteu-se em mestre, um dos mais importantes poetas de sua geração, e uma geração de pesos pesados como João Cabral, Mário Faustino, Ferreira Gullar, Augusto e Haroldo de Campos. Glauco de Sá Brito, menos conhecido, sem deixar de escrever versos, dedicou-se intensamente, como autor e diretor, à televisão e ao teatro -dá hoje nome a um dos auditórios do teatro Guaíra. Morreu prematuramente, em 1970, aos 50 anos.
A leitura conjunta dos dois livros de estréia nos indica a presença de alguns pontos em comum. Há uma melancolia de quem procura caminhos e se sente sufocado, que vai se desdobrar numa busca poética às formas tradicionais e à superação dessas mesmas formas. Já que se falou em geração, esta é também, com variações, marca dos livros de estréia de Augusto de Campos, "O Rei Menos o Reino", e de Mário Faustino, "O Homem e Sua Hora".
É reveladora, nesse sentido, a aproximação das "Baladas" de Paes e de Brito. Os dois poetas se valem da balada tradicional, aproveitando dela o ritmo ágil e o apoio sonoro do refrão. No entanto, criam dissonâncias ao trabalharem com versos de cinco sílabas que, aqui e ali, reduzem-se a quatro ou estendem-se a seis e cortam o embalo em que o leitor vem. É a inquietação existencial se desdobrando em inquietação rítmica.
Essas semelhanças não implicam, é claro, identificação. Suas dicções são muito diferentes. Em "O Aluno", José Paulo Paes já requer as patentes de alguns de seus procedimentos-chave. A ironia fina -o humor, mesmo-, que encontramos em poemas como "Drummondiana", e a contenção verbal da qual surge, clandestina, a veia sentimental semi-oculta do poeta, como em "Canção do Afogado".
O marinheiro Glauco de Sá Brito olha o mar com outros olhos. Sua maneira poética segue o caminho inverso. Centrada no "eu", composta sobre o sentimental, sua poesia busca um artesanato verbal que ora se vale do prosaico, ora se revela em fina mestria, como nos poemas "Soneto Antigo", em que recupera a dicção camoniana, ou "Problema do Cão", exercício rítmico aplicado ao tema do cão que persegue sua própria cauda.
Assim, ele não vê o mar que afoga, mas o mar coisa ampla, que serve de alternativa ao sufocamento. É com sofreguidão que o eu lírico dos seus três livros procura essa amplidão que o mar concretiza. E é uma amplidão desejada em todos os planos, do amoroso ao político, em contraposição a uma insatisfação ou a uma dificuldade presente.
Na temática amorosa, como nota José Paulo Paes na introdução a estas "Poesias Reunidas" de Brito, medo e desejo marcam esse descompasso. Situação de conflito máximo porque decorrente de um amor que jamais, literalmente jamais, revela o sexo do ser amado. Daí a significação emblemática do título de seu segundo livro, "Cancioneiro de Amigo", que dá corpo a essa ambiguidade pelo confronto dos sentidos antigo e corrente da palavra "amigo".
Sua poesia engajada também se constrói nesse entroncamento da restrição vivida com o alargamento desejado. Isso faz com que, em Glauco de Sá Brito, o engajamento não seja uma "servidão de passagem", pois integra organicamente sua dicção poética. Há mesmo um poema, "Integração", que é bem ilustrativo dessa ligação. Nele, fala-se de alguém que quer se integrar na vida, mas na vida toda: "Queria ser os barcos que parte/ e o sulco que a proa abre em líquido/ e ser o marinheiro (...)// Ele queria ser as emoções do povo/ e ser o povo/ com sua energia e esperança".
Estas novas e boas edições, que trazem fortuna crítica de qualidade, acabam promovendo vários reencontros entre esses dois poetas que, desde que José Paulo Paes deixou Curitiba, em 1949, jamais se reencontraram pessoalmente. O reencontro editorial -uma visita ao início de um percurso poético. O reencontro crítico -a apresentação da poesia reunida de Glauco feita por José Paulo. O reencontro poético -um belo poema-homenagem que José Paulo Paes dedica ao companheiro de vida intelectual da juventude.

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