São Paulo, domingo, 9 de novembro de 1997
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Como no começo de tudo

MARIA BETÂNIA AMOROSO
ESPECIAL PARA A FOLHA

Os que vêm acompanhando o trabalho desse carioca são unânimes ao afirmar que, balançando entre dar voz ao poeta, às voltas com o fazer poético, ou ao homem angustiado pelo não-sentido das "coisas", a cada livro pesa-lhe mais o mundo, que o atordoa e faz dissonar os poemas.
A diferença desta vez é que tudo aparece aos gritos: no título, na escolha das ilustrações e na composição da capa, da contracapa, da orelha, na própria maneira de dividir o livro em dois blocos, dando a eles subtítulos, e particularmente nos poemas.
"Duplo Cego" é um teste farmacêutico que Armando descobriu lendo bulas de remédio. No teste, quem aplica a droga não sabe o que está aplicando e quem a recebe não sabe o que está recebendo. Na capa, a terceira prancha do teste de Rorschach, a dos relacionamentos; na contracapa o último poema do livro, "Zerando"; nas orelhas, um texto cego -um texto sem sentido, usado pela publicidade só para delimitar um espaço e, por último, as divisões do livro: a primeira subintitula-se "Do ensaio"; a segunda, "Da representação".
O que está sendo gritado é que a cegueira é geral. Ela está na matéria vida como está na matéria poesia. Com disciplina, Armando começa pela poesia para abrir a conversa; escolhe uma epígrafe: "Escrevo em loco, sem literatura". Os primeiros poemas são sobre esse "escrever contra", "sem horizonte/ em pé, direto na parede", sobre os materiais que servem de superfície, duros, como a pedra, o cristal, o diamante até chegar aos azulejos e à porcelana. Como tirar sentido do que se rompe, mas não se deixa moldar? Embora declare que "não pode escrever na linha de arrebentação" ("Limite", pág. 5), é justamente esse o seu lugar, onde há barulho, movimento, espuma e milhares de formas ainda indefinidas. Mas há outro lugar que é também o limite dessa poesia, a parede, estática, silenciosa, nomeada nos poemas da primeira parte, mas, na verdade, "arrebentação" ou "parede" são idênticas tanto pelo excesso de movimento quanto pela total imobilidade.
O "deste lado" ("Grão", pág. 7) e todos os outros lados imagináveis pelo poeta pressupõem um limite que é o da pré-poesia, da pré-matéria, do que fica sempre como resíduo, "alma, imã, ruína". No mundo sem sentido, "a luz seca a sombra" ("Célula", pág. 9), isto é, não está na Natureza o valor da luz nem o da sombra. Tudo se oferece na forma bruta. Tudo é, pode ser e não é, ao mesmo tempo.
Nessa primeira divisão do livro, é o poeta que representa, diante dos leitores, seu papel de poeta e ensaia a entrada do "eu": "Esta luz é a de dentro/ da desordem, é a que se desperdiça/ concentrada, é a que sobra/ e a que de tão acesa se apaga" (pág. 15). No jogo de palavras entre "algo" ("Algo É Além", pág. 11), "al" (que significa outra coisa, o mais, tudo mais) e "alma" se concentram todos os sentidos, mas com a entrada do "eu", sentido e sensação se confundem. O pequeno corte, rápido e sutil, abre-se, pela maior pressão da mão que quer ver sangue jorrar, porque a hemorragia é inevitável.
Já anunciada previamente, esta segunda parte é a da "voz que vem de dentro", "tendo como alfabeto o olfato" (pág. 41). Não é mais o material do poema, o lugar do poeta, o sentido da poesia o que interessa: é a vida no que ela tem de mais duro, mais impenetrável ao pensamento, onde é dominada pela explosão dos sentidos humanos ("Os Sentidos no Ataque", pág. 47): a morte, o sexo o amor. Armando Freitas se vinga da falta de sentido botando os sentidos para funcionar. O poema "Dor" (pág. 51) ("por dentro/ o corpo se recuse a arriar/ na cadeira cotidiana/ e mantenha o rio irritado/ o instante de touro e natureza") é o da braveza -mais do que da dor- contra o que inexoravelmente definha; o horror da morte antecipada aparece em "Sem Nome" (pág. 55).
O estado de alerta imposto pela iminência do desejo ("Anel", pág. 57) explode num gozo que traz sempre consigo a idéia da putrefação da carne, de violência ou de sacrifício (E trepo para te matar/ ou te reduzir a tua carne/ indo ao fundo mais ermo/ e extremo -ao mais úmido/ enfiando tudo/ no toque e na estocada, "Loveless", pág. 72); não há nesses poemas, porém, êxtase, porque não há transcendência possível.
Quase encerrando o livro, "Vulgata", o Apocalipse segundo Armando Freitas e a declaração "em tempo real" de que o sentido é sempre contrário, indefinidamente ("Em Tempo Real", pág. 85). Tanto na vida como na poesia ensaia-se quando se representa e representa-se enquanto se ensaia. Dos dois lados, do livro e da vida, o poeta debate-se contra o mesmo limite tênue entre sensação e sentido, reconstruído, um texto míope. O aparentemente sem sentido não está muito distante do que faz sentido.
As feridas à mostra, arranhado, inconformado com essa condição de poeta-homem, estatelado sobre uma pedra, sob o sol, se dá, como em certos animais que refazem seus corpos mutilados, a regeneração do corpo do poeta que conclui "Zerando":
"Abrir as veias e as gavetas:/ ávidas, vazias/ viradas pelo avesso./ Me despeço de uma vez/ longa vida abaixo/ mas não avio/ nenhuma viagem ou avião/ Não me visto sequer/ nem esvaneço/ apenas resto/ apesar do vento/ que me pega de frente/ e me entorna todo/ pelos olhos/ Defronte, dispara/ o dia lá fora/ enquanto eu fico aqui/ tão fixo e travado/ como no começo de tudo".
O poeta goza de perfeita saúde.

Nota:
1. O autor publica sua poesia desde a década de 60. Alguns dos últimos livros são "Números Anônimos" (1994), "Cabeça de Homem" (1991), "De Cor" (1988), todos pela Ed. Nova Fronteira.

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