São Paulo, segunda-feira, 10 de novembro de 1997
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A depredação da USP

MARIA RITA KEHL

A USP amanheceu, na última quinta-feira, coberta de vergonha. Um menino foi morto dentro da Cidade Universitária, em circunstâncias que só com muita má-fé poderíamos considerar "misteriosas", uma vez que seis outros adolescentes testemunharam (e sofreram) boa parte do que aconteceu.
Daniel Pereira de Araújo e seus amigos da favela São Remo, no domingo retrasado, cometeram a contravenção de nadar na raia olímpica da Cidade Universitária. Perseguido por um segurança de moto, o garoto correu ao longo da raia, enquanto os amigos eram espancados por outro membro da guarda "desarmada" da universidade.
Daniel desapareceu, e seu corpo foi encontrado boiando nas águas da raia. Foi morto a pancadas? Atropelado pela moto do segurança? Atirou-se na água para fugir e se afogou sem ter sido socorrido por quem o perseguia?
Qualquer das hipóteses é tenebrosa o suficiente para nos envergonhar e já deveria ter feito a reitoria da USP vir a público se lamentar, se desculpar e promover, junto com a coletividade, se não uma forma de reparar o irreparável, pelo menos um ato simbólico que marcasse uma posição de profunda condenação diante do que aconteceu.
Mas não. A resposta oficial da reitoria é uma peça de cinismo e má-fé em que se reconhece a marca autoritária do período dos governos militares, o descompromisso com a verdade e a pressa em livrar a cara dos responsáveis diretos e indiretos pelo crime.
Depois de lamentar rapidamente "os fatos ocorridos", a reitoria apressa-se em culpar, em primeiro lugar, as vítimas, que sabiam dos riscos que corriam; em seguida apresenta, antes de investigação, a versão pessoal escolhida pelo magnífico reitor: "O menino Daniel, encontrado na madrugada de hoje na raia olímpica, provavelmente foi vítima de afogamento por tentar usar o local para prática de natação".
As associações dos alunos, professores e trabalhadores da USP divulgaram uma nota informando que violências e abusos têm sido frequentes por parte dos seguranças desde que a USP foi fechada para o público. É claro que o assessor da prefeitura da universidade alega não ter sido informado de nada.
Éramos melhores nos tempos do regime militar. Quando os direitos humanos eram ameaçados por um governo ilegítimo, a universidade mantinha um compromisso claro com a democracia, contra o autoritarismo.
O campus, hoje fechado para a população vizinha em nome da "preservação de seus equipamentos" (para isso, bastava orientar os seguranças, em vez de espancar "invasores" e ameaçar estudantes e moradores do Crusp), durante 40 anos foi uma grande área verde e de lazer aberta ao público.
O fechamento da Cidade Universitária, como lembrou o professor e jornalista Bernardo Kucinski em debate sobre direitos humanos na Maria Antônia, simboliza o atual descompromisso da universidade com a população, com a defesa dos interesses públicos, com o combate às desigualdades sociais com as quais sofremos todos os brasileiros.
O magnífico reitor Flávio Fava de Moraes, ao excluir do "seu" campus toda a população de uma cidade que sofre com a falta de áreas verdes e de lazer, contribui com o aumento da delinquência que pretende manter do lado de fora dos muros da USP.
Então ele não sabe que a exclusão motiva a criminalidade? Estará tão mal informado em relação ao próprio saber produzido pela academia? Pesquisas recentes em sociologia e urbanismo demonstram que a criminalidade e a delinquência tendem a diminuir nas regiões da cidade em que a população tem acesso a bens como áreas esportivas, parques, obras de arte -um pouco de beleza, de cidadania, de cultura.
Mas não. A delinquência, para o reitor da maior universidade pública do país, parece ser problema exclusivo da polícia; não tem nada a ver com as condições de cidadania para as quais a universidade tem o dever de contribuir.
Ainda assim, Daniel não era um delinquente. Morando ao lado do campus, onde provavelmente jogou bola e passeou antes do fechamento, devia viver inconformado, como nós, com o desperdício e o absurdo daquele espaço fechado nos fins-de-semana. A pequena transgressão que cometeu poderia ter sido evitada se o campus estivesse aberto ao público naquele domingo de calor -assim como a violência que o matou, já que atos de covardia não costumam ser praticados diante de testemunhas.
Imagino que hoje privadas, jardins, orelhões e outros "equipamentos" que a reitoria fez por preservar pela via autoritária da exclusão estejam todos bonitinhos e bem conservados.
A depredação, porém, existe onde ninguém vê. A instituição foi depredada. Os ideais de justiça social e democracia que caracterizam a USP foram depredados. A julgar pela nota da reitoria, até o compromisso com a verdade está sendo depredado. Cabe a alunos, professores e trabalhadores restaurar o patrimônio ético da nossa universidade, antes que seja tarde demais.

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