São Paulo, quinta-feira, 13 de novembro de 1997
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Se o assunto é arte, me chame um macaco

DAVID DREW ZINGG
EM SAMPA

"Em dado momento, eu me vi diante de um óleo (quadro) que, a julgar por sua execução geral, julguei provavelmente ser um auto-retrato."
Peter de Vries

Hoje, andando pela Paulista (a avenida, não a pessoa, Joãozinho), percebi até que ponto a grande cidade em que vivemos ama e mostra a arte.
Parece que praticamente todas as esquinas da importante avenida são decoradas com uma obra de arte. E esse é apenas o começo do ataque de arte (que, na gringolíngua, rima com "ataque do coração") que atinge a metrópole inteira.
Este grande jornal, por exemplo, vem publicando uma série de reportagens, guias e mapas para ajudar o pobre cidadão desamparado a abrir caminho no meio da rica exposição de obras de arte que recobre a cidade.
Há até viagens gratuitas de trem nas quais o(a) senhor(a) Cidadão(ã) recebe instruções sobre como olhar e pensar nesta Capital Mundial das Artes.
Tio Dave tem certeza de que os artistas que produzem toda essa arte que andam nos mostrando devem estar eufóricos com os resultados.
Os críticos, os donos de galerias de arte e os diretores de museus devem constituir um bando bem satisfeito de promotores de arte.
Parece que todo mundo que mexe com arte de qualquer maneira deve estar muito satisfeito com essa cidade saturada de arte.
Exceto eu, coitadinho de mim.
Estou confuso.
A razão pela qual estou confuso é que simplesmente não sei o que é "arte". E, depois que um amigo me contou sobre determinada home page na Internet, acho que nunca mais vou conseguir entender o que é realmente "arte".
Koko e De Kooning
O site na Internet ao qual me refiro pertence à The Gorilla Foundation (Fundação Gorila), uma organização sem fins lucrativos com sede na Califórnia. O programa principal da fundação consiste em ensinar habilidades comunicativas a um casal de gorilas excepcionais chamados Koko e Michael.
Koko, a fêmea, nasceu em 1971. Michael, o macho, é dois anos mais jovem do que ela.
Ambos utilizam a linguagem de sinais e compreendem o inglês falado, o que é muito mais do que tio Dave pode afirmar de alguns de seus companheiros de bebida.
São dois gorilas MUITO espertos.
Se prosseguirem na curva de aprendizado que descreveram até aqui, e se alguém lhes vender um computador Macintosh por um precinho camarada, meu medo é que comecem a redigir esta coluna eles mesmos, em algum momento antes da chegada do próximo milênio.
Koko, segundo a fundação, já foi mais longe no aprendizado de habilidades linguísticas utilizáveis do que qualquer outro ser não humano. Ela possui um vocabulário de mais de 500 sinais e já inventou mais de 400 outros.
Essa gorila fêmea altamente inteligente compreende cerca de 2.000 palavras do inglês falado. Koko é uma senhorita muito sociável, e geralmente é ela quem inicia as conversas que tem com seus companheiros humanos. Ela costuma construir sentenças que têm em média entre três e seis palavras.
Pense em Michael e Koko como seus vizinhos de classe média, um tanto quanto peludos. Os gostos pessoais dos dois são extremamente normais, a ponto de chamar a atenção.
Entre as comidas preferidas de Koko, figuram pratos delicados à base de tofu (queijo de soja), além de milho verde. Suas diversões favoritas estão ligadas ao reino animal, fato que não chega a surpreender. Seu programa de televisão predileto é "Wild Kingdom" (Reino Selvagem), seu filme predileto é "Free Willy" e seus brinquedos favoritos são jacarezinhos de borracha.
Mike, por sua vez, possui um lado Elvis Presley -ele faz qualquer coisa por um sanduíche de manteiga de amendoim. O programa de TV que mais gosta de assistir é "Vila Sésamo".
Inteligentes como eu
Koko tem um QI testado entre 70 e 95, segundo a escala humana, na qual a pontuação 100 é considerada "normal".
Michael, sendo macho, é um pouco mais devagar. Seu vocabulário só supera ligeiramente a marca das 350 palavras.
Essa dupla inteligente andou aprontando algumas brincadeiras espantosas com a língua. Koko e Michael inventaram palavras novas (para eles) para usar em atividades prazerosas tais como a prevaricação e para fazer referência a tempo e a condições emocionais.
Eles usam palavras em sentido metafórico e mexem com humor, insultos, ameaças e discussões. Engajam-se em brincadeiras de fantasia, contam histórias e -epa!- fazem julgamentos morais.
Koko e Michael partilham, sob uma forma ligeiramente menos desenvolvida, de quase todos os aspectos da vida humana que são típicos do pensamento político avançado (pense em Washington ou numa capital nacional mais próxima).
A atividade de gorila que os relaciona a São Paulo nesta semana talvez seja a mais intrigante de todas. Tanto Koko quanto Michael são pintores e pintam suficientemente bem para quase serem confundidos com, digamos, Aguilar, Granato ou De Kooning.
A arte é o que a arte faz
A home page da Gorilla Foundation funciona como uma espécie de galeria virtual de arte. Nela você encontra sete quadros coloridos, interessantes, pintados por Koko e Michael nos estilos representativo e expressionista.
Os quadros cobrem vários temas, desde o simplesmente descritivo até o conceitual. Michael é representado por um auto-retrato, batizado por ele de "Eu". Não sei bem por que Van Gogh me veio à mente.
Michael tinha um cachorrinho de estimação chamado "Apple", com quem adorava brincar de pega-pega. Um dia ele executou uma pintura de memória, usando apenas tinta branca e preta, embora tivesse uma paleta inteira de cores para escolher, como um arco-íris.
Detalhe: preto e branco são as cores de "Apple".
OK, Joãozinho, talvez você tenha razão: qualquer nerd é capaz de pintar a imagem de um objeto simples. Isso não exige grande cérebro.
O quadro que aproxima o gorila é um passo gigantesco a mais de uma retrospectiva individual na exclusiva galeria de arte de Kim Esteve, na Chácara Flora, é o favorito do crítico de arte Dave.
Não se trata de uma simples e burra representação pictórica de pássaros ou abelhas, embora seja surpreendente ver um quadro de flores pintado por Koko.
A pintura que me faz devanear sobre essa coisa misteriosa chamada arte foi feita por Michael, indicado pela Gorilalândia para ser o novo De Kooning de lá.
O trabalho é intitulado "Anger" (Ira). Para vê-lo, aponte seu navegador Internet para http:/www.gorilla.org e prepare-se para responder à pergunta básica relativa à "arte" -o que é, afinal?
Ou, na próxima vez que tiver vontade de ir a um museu ou galeria de arte, pense na hipótese de trocar por uma visita intelectualmente estimulante ao zoológico.

Tradução Clara Allain.

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