São Paulo, quinta-feira, 13 de novembro de 1997
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FHC, a soberba e a submissão

TARSO GENRO

Do ponto de vista da esquerda, não é possível analisar com maturidade política a situação do país após a "crise das Bolsas" e o pacote FHC sem lembrar um episódio recente.
Ele faz transparente a soberba em que o presidente recaiu, pedindo subliminarmente para ser identificado com a nação -fato que, aliás, dá o tom usado pelos seus agentes políticos, como o inefável Gustavo Franco, para quem o mundo global é melhor que a novela das oito.
Refiro-me à entrevista de Fernando Henrique Cardoso na qual ele, aproveitando o espaço que tem como primeiro magistrado da nação, usa as grandes cadeias de TV para dizer à oposição de esquerda: "Façam oposição a mim, não façam oposição ao Brasil".
O seu ego gigantesco -como já bem analisou Fábio Konder Comparato num memorável artigo- só vê na oposição ataques ao Brasil. Então pede: "Ataquem a mim". É o clímax da encenação: a esquerda quer destruir o Brasil e o presidente quer se oferecer em holocausto pela pátria.
Ao mesmo tempo em que o presidente acusa a oposição de ser "inimiga do país", como fazem todos os grandes e pequenos tiranos quando estabelecem uma identificação absoluta dos seus governos com a pátria, ele quer se sacrificar para que nós, os "inimigos da nação", tenhamos nele o alvo do nosso delírio destrutivo.
Seria apenas um caso psicanalítico grave de um ego cujo autoritarismo pode não ter limites se não fosse uma farsa trágica de um "operador" falido perante o cassino global. Toda a máscara de intelectual moderno e moderado dissolve-se no bojo da sociedade-espetáculo. Até os que se iludiram um pouco com FHC podem, agora, ter clareza.
A sociedade-espetáculo misturou-se com o cassino global. Essa fusão, que conforma a ordem globalitária, tem um ritual que faz a couraça protetiva da sua ideologia. Todos os grandes "formadores de opinião" já esqueceram que as "privatizações" iriam reduzir a dívida pública e que esta aumentou brutalmente com a manipulação dos juros.
Nenhum deles comenta que essa é a essência da ordem global -não cooperativa, de dependência e subordinação- tutelada pelo capital financeiro. Ninguém diz que a desordem não é acidente de percurso, mas uma ordem de transferência de custos para a periferia.
Ninguém lembra que a natureza das reformas em curso reduz ainda mais a capacidade de resistência do Estado nacional e diminui a sua possibilidade de disputar uma inserção cooperativa e soberana na nova ordem mundial.
São as reformas que possibilitam os controles do Estado e fazem crescer internamente o poder do capital financeiro, que sujeita o Estado e os produtores e também aprofunda a nossa submissão aos humores de Hong Kong.
Mas em bilhões de lares no mundo as imagens das Bolsas, de Nova York a Cingapura, socializam a ansiedade dos operadores do cassino para dissolver, nas telas coloridas, a face escura dos fatos: a ditadura do capital volátil sobre todas as economias opera com a cumplicidade das políticas neoliberais.
As notícias, porém, avisam que tudo é um "processo sem sujeito", como se a história ao vivo fosse um encadeamento de acontecimentos da natureza ao qual todos temos que nos submeter, torcendo para que dê certo.
Os "yuppies" da economia -os novos intelectuais do globalitarismo, que comentam a globalização- estão, porém, constrangidos. Não sabem o que dizer. Não sabem como justificar os "custos do ajuste", pois não existem pobres no seu vocabulário econômico. Não sabem como explicar essa "armadilha" da globalização, "essencialmente benéfica" -que, aliás, não é "benéfica" nem "maléfica". Como as grandes navegações, depende do que os homens fazem dela.
Por tudo isso, eles precisam de um alvo. Se a esquerda estivesse no poder, seria pior; se as privatizações pararem, será pior; sem FHC, seria muito pior. O cassino global precisa da sociedade-espetáculo. FHC já disse que só Deus sabe quando os juros vão baixar. Talvez agora apareça dizendo: "Não façam oposição a Deus, façam oposição a mim!".
O que está acontecendo é ainda pouco grave perto do que esse governo está preparando para o futuro. Qualquer solidariedade para com ele, neste momento, é um crime contra o país.

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