São Paulo, domingo, 16 de novembro de 1997
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DURKHEIM

GABRIEL COHN

Continuação da pág. 5-10

A centralidade em Durkheim da preocupação com o estabelecimento de laços entre os homens naquilo que literalmente é sua convivência social o levou a dar especial relevo à idéia de comunicação, que também reapareceria sob várias formas no centro da reflexão social deste século. É verdade que nele a referência aos vínculos comunicativos está marcada por uma referência muito sua, que leva ao limite a idéia de laços morais compartilhados. É que em vários momentos a idéia da comunicação entre partes da sociedade aparece como uma espécie de realização imperfeita de uma unidade moral mais funda, daquilo que em seus próprios termos seria uma "comunhão".
Nesses pontos o pensamento durkheimiano é percorrido por uma espécie de utopia não explicitada, em que a sociedade aparece no limite como plenitude da participação associada à plenitude da realização pessoal. Não se trata de idéia incompatível com um pensamento social que concebe a liberdade na sua feição mais severa e mais clássica, de capacidade de ser "senhor de si" na sua integração com os outros. Ao mesmo tempo essa concepção assinala a dimensão trágica do pensamento durkheimiano, vincado pela presença simultânea de um esquema analítico que opera com dualidades irredutíveis (o individual e o social, o sagrado e o profano e assim por diante) e uma concepção de fundo marcada pelo anseio à unidade íntegra, à plenitude da experiência e da consciência. Seria preciso analisar, neste passo, o papel que desempenham nesse pensamento noções como as de disciplina, de sacrifício e de personalidade.
Estado e democracia
A concepção da sociedade como instância moral primordial marca profundamente o pensamento político de Durkheim. Desde logo isso se manifesta na sua recusa a considerar a territorialidade como critério definidor do Estado moderno e na sua insistência em considerá-lo como ente "moral" que não se coloca acima da sociedade, mas é um órgão dela com funções específicas. Dele não se espera pouco (muito mais, sem dúvida, do que o monopólio da violência legítima no interior de um território, como queria o grande contemporâneo de Durkheim, Max Weber). Espera-se que ele seja o órgão capaz de produzir uma consciência clara do que convém à sociedade e de aplicá-la pela via da lei, sempre em conformidade com sua tarefa maior, que é a de assegurar os direitos individuais.
Trata-se portanto de parcela da sociedade, que não se destaca dela, mas da qual a própria sociedade exige iniciativa própria naquilo que ela não produz espontaneamente, que é a clara consciência das suas necessidades. Numa metáfora que pode soar estranha em outros lugares, mas faz sentido numa sociedade de politécnicos e altos administradores como a francesa, é como se o Estado fosse o cérebro da sociedade. Não impera sobre ela como instância externa, mas tampouco é mera instância receptora e processadora de demandas sociais. Nessas condições, deve ter autoridade para agir, mas não pode ser deixado solto, sob pena de não funcionar ou de tornar-se despótico. Deve, em suma, estar em comunicação constante com o resto da sociedade. É a esse necessário processo de comunicação entre o complexo de órgãos estatais e o conjunto dos cidadãos que Durkheim reserva o termo "democracia".
É neste ponto que entra o aspecto do seu pensamento político que mais embaraço causa aos seus comentaristas. Trata-se da solução que propõe para o problema da organização política dos interesses sociais, sem a qual os indivíduos se veriam isolados e impotentes diante dos aparelhos do Estado. De modo inteiramente coerente com suas concepções básicas, Durkheim adota um critério social ("moral", nos seus termos) para definir as bases de organização daquilo que seria, na linguagem que se tornou comum hoje, a "sociedade civil".
Na sua perspectiva essas bases não poderiam ser simplesmente territoriais. A participação nos processos políticos envolve a existência prévia de laços no interior dos grupos e entre eles, e é tanto mais eficaz democraticamente (isto é, como processo de comunicações recíprocas entre o Estado, os grupos sociais e os indivíduos) quanto mais os interlocutores do Estado tiverem sua consistência assegurada por modos de vida e valores compartilhados, ainda que diferenciados para cada grupo.
Daí a idéia de, numa sociedade organizada em termos da diferenciação das ocupações mediante a divisão do trabalho, atribuir capacidade representativa aos grupos ("corporações") profissionais. A idéia acabou ficando desmoralizada pelas afinidades que lhe foram atribuídas com o corporativismo fascista. Mas, com relação a este, certamente a idéia de fundo vai na direção oposta. Não vai no sentido do reforço do Estado, mas sim da procura da modalidade de representação política mais consentânea com a forma socialmente mais significativa de organização da "sociedade civil" no mundo moderno. Ainda que se demonstre que se trata de concepção equivocada no conjunto, os problemas que busca enfrentar continuam em debate.
E se Durkheim desembarcasse aqui e agora, para avaliar o mundo que deixou? Não se sentiria um estranho nem deixaria de reconhecer progressos. Afinal, ele jamais tivera ilusões. Sempre soubera que o mundo cuja unidade buscava era irreparavelmente dividido. Mas provavelmente se surpreenderia com a persistência de problemas que buscara enfrentar com os recursos de uma ciência social teoricamente bem fundada e praticamente relevante, da qual se propunha ser o criador. Egoísmo selvagem e predatório como valor dominante no lugar do individualismo moral que imaginava estar em ascensão; anomia; dificuldades para lidar com a diversidade cultural; fortalecimento de particularismo; enfim, um mundo que o levaria a interrogar-se, no fundo, se a ciência social que propusera não teria se revelado insuficiente. Ou talvez não tivesse sido estudada com a devida atenção? Que cada qual imagine a resposta íntima do velho mestre.

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