São Paulo, domingo, 16 de novembro de 1997
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A guerra do nome

EDUARDO LOURENÇO
ESPECIAL PARA A FOLHA

"Por sorte, a vaca não tem apelidos da família para lhe complicarem a existência" Almada Negreiros, em "Nome de Guerra"

Não é por mero capricho que inverto o título, célebre entre nós, e que merecia sê-lo no mundo de língua portuguesa, do único romance de Almada Negreiros. O autor de "Nome de Guerra" é um autor paradoxal, mas explícito. Ele fez mesmo do explícito a sua poética, aplicando à letra uma das suas prosas provocantes: "Quando eu nasci já estava tudo dito e escrito: só faltava escrevê-lo". Chamou-se à sua poética a poética da ingenuidade. Não lhe cabia menos a de poética do óbvio, que por sê-lo nos esconde a realidade que não é outra que a da sua aparência.
Na poesia ou na ficção Almada permanece um visual. Concebe os seus personagens com a mesma nitidez estilizada, sintética, que caracteriza os seus desenhos. Não são marionetes -pelo menos aqueles que nos surpreendem e tocam mais, sobretudo os personagens femininos-, mas Almada manipula-os como se o fossem, porque na verdade, aos olhos do destino, eles e nós, não são outra coisa.
Desde a abertura do seu romance, Almada anuncia o seu propósito: se não nos precavemos, ou até para quem está precavido, a aparência torna-se, é a própria realidade, o nome aquilo que designa. O que é válido para a vaca, segundo Jules Renard, confundida desde todo o sempre com esse nome sublime (uma vaca é uma vaca), também o é para cada um de nós: nós somos o nosso nome. O nome é já o destino. Não o escolhemos, foi-nos dado e, todavia, é ele que nos identifica, e pouco a pouco somos nós que nos identificamos a esse nome do acaso, concertado. A relação com o nosso nome converte-se na relação conosco mesmos. Ao contrário de Pessoa, mas, no fundo, prisioneiro de análoga preocupação, a do estatuto do eu. Almada Negreiros não está interessado em exprimir a sua personalidade potencialmente infinita, múltipla, desdobrável. Para ele, cada um de nós tem um único nome próprio. É esse nome que nos confere uma unidade. Mas nós não o alcançamos sem um duro combate, uma guerra do nome, uma vitória obtida por uma espécie de ascese, por uma subtração, não por uma multiplicação.
Se o nome próprio, João, Manuel, nos subtrai a natureza, o nome da família remete-nos para a história natural, para um enraizamento na noite dos tempos que nos rouba o nosso tempo pessoal, o do nosso nome único. Contudo, este enraizamento, o fato de que nós temos, ou antes, que nós somos todos uma árvore genealógica, não pode separar-se dessa inevitável busca do nosso verdadeiro nome. Na realidade, o conhecimento da árvore genealógica e a revelação do nome são uma e a mesma coisa. O nosso mistério está ligado ao dessa árvore genealógica que tanto parece preocupar o narrador do "Nome de Guerra". Afinal, o nosso caso não é bem o da vaca de Julio Resnard.
Poucos textos ilustram tão bem como o romance de Almada as conhecidas teses de Marthe Robert sobre "as origens do romance". De imediato, Almada apresenta o seu como romance familiar no sentido mais lato, como busca das origens. Quer dizer, simultaneamente busca da originalidade e de unicidade. O narrador no-lo diz com toda a clareza: "Todos nós, inclusive os expostos (sou eu que sublinho), temos todos as nossas árvores genealógicas do mesmo tamanho. Lá no tamanho das árvores todos somos iguais. Mas é precisamente nas árvores que está a nossa diferença. Vê-se perfeitamente que a cada um aconteceu qualquer coisa que não se passou com mais ninguém. E aconteceu-nos antes de nós termos nascido. É a árvore genealógica. Esse segredo do nosso segredo. Esse mistério do nosso mistério". Sendo assim, como ter um destino, um nome, quando o essencial parece já ter acontecido neste episódio mítico -mais decisivo ainda que o da nossa filiação adâmica- de pertencer a uma dada "árvore genealógica" e não a outra?
Estranha esta preocupação pelo tema da árvore genealógica quando se tem um nome como Almada, de que fará nome próprio, brasão e fortaleza, mas também um apelido como Negreiros? Na sua época, ter nascido em S. Tomé, sentir-se "outro" em Portugal, não foi um dado indiferente para o autor de "Nome de Guerra". Há, certamente, uma questão-Almada que não é da competência do literário, mas que o implica -ou quem sabe?-, alimenta toda a sua obra, extraordinário e inédito ajuste de contas com a Ordem -e, antes de mais, com a dos nomes que a fundam.
O autor do "Manifesto Anti-Dantas", para ele o pilar por excelência dessa Ordem e, sobretudo, o poeta-panfletário da "Cena do Ódio", empregou toda a sua energia e todo o seu gênio a estilhaçar o espelho que a sociedade -ou apenas certo olhar alheio- lhe mostrava, um espelho onde a sua imagem se deformava. Ele queria e conseguiu existir superlativamente, como aquele "l" interminável, narcísico do seu nome, enfim, próprio. Almada, a testemunha, para apagar essa inexistência original ou esse "pecado", tal como o olhar alheio -porventura fantasmado- o conceberia. Em suma, escrever a história daqueles que não existem ou que escondem o seu verdadeiro nome, como Judite, à espera de poderem glorificar-se nele.
O último capítulo do "Nome de Guerra" é consagrado à evocação da sociedade (daquela), espécie de Babel que parece ser capaz de nos dissolver na pluralidade aleatória de todos os nomes, mas, no fundo, impotente contra a árvore genealógica, o fluxo único do sangue responsável pela nossa singularidade, se nós lhe somos fiéis. Encontramos aqui o tema central de Almada, a sua apologia veemente da unicidade da pessoa, do indivíduo, cujo dever é o de ser, sozinho, a humanidade inteira.
É um Stirner corrigido pela Bíblia ou vice-versa. O nosso imperativo é o da direção única, aquela que só o indivíduo sabe e pode traçar para não se perder. "O nosso destino é inatingível por outrem. E é este o fundamento de toda a humanidade, de toda a Arte e de toda a Religião. O nosso sistema pessoal é de ordem humana, estética e sagrada. Serve apenas o próprio. É o seu único caminho. O melhor que se pode fazer em favor de qualquer é ajudá-lo a integrar-se em si mesmo." Quer dizer, em termos de função, incitá-lo a descobrir o seu verdadeiro nome.
Límpida formulação, temerosa empresa. O leitor entrevê toda a sua complexidade e sob a forma de jogo, a sua tragédia, no capítulo 3 de "Nome de Guerra", intitulado precisamente: "Uma Judite Que Não Se Chama Assim". O seu nome mágico, Judite, de heroína bíblica, carregado de uma história que ela ignora (a da arcaica submissão da mulher pelo homem reconvertida em libertação) é uma ferida e um sofrimento. Mas também o da guerreira à espera da sua hora, nome de guerra.
Todo o seu ser lhe pede que diga o seu "verdadeiro nome" para existir. Mas, estranhamente, o seu falso nome protege-a. Como se estivesse certo com o mundo factício e de mentira onde é obrigada a viver. Com ele pode, em última análise, suportar o insuportável. Talvez que o nosso verdadeiro nome, como o nome de Deus, seja impronunciável. Em todo caso, perigoso. "Parece que, em verdade, um nome suposto facilita. Não sei o quê, mas facilita. E se facilita é porque o nome verdadeiro transtorna ou transtorna-se. Haverá, assim, necessidade da mentira para defender a verdade." O que começou com a Bíblia e Stirner acaba com Nietzsche, de que Almada foi admirador fervoroso. A "guerra do nome" é também, sobretudo, a desta nomeação em perpétua obscuridade da mentira e da verdade, em nós e no mundo, que não podemos esquivar nem falhar sem nos demitir de nosso ofício humano.

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