São Paulo, domingo, 16 de novembro de 1997
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UM TRECHO DE "NOME DE GUERRA"

AS PESSOAS PÕEM NOMES A TUDO E A SI PRÓPRIAS TAMBÉM

DAS DUAS UMA: ou as pessoas se fazem ao nome que lhes puseram no batismo, ou ele tem de seu o bastante para marcar a cada um. Será imprudente deduzir o nome próprio através das fisionomias ou dos caracteres; no entanto, uma vez conhecido o nome próprio de uma pessoa, ficamos logo convencidos de que este lhe assenta muito bem. Jules Renard tirou um esplêndido retrato da vaca em tamanho natural: "On l'appelle la vache et c'est le nom qui lui va le mieux" (1). Como vedes, este corpo-inteiro está extraordinariamente parecido, é vaca por todos os lados.
Por sorte, a vaca não tem apelidos de família para lhe complicarem a existência. Mas, como é animal doméstico, vem a dar-lhe na mesma que tenha ou que não tenha apelidos. O ser animal doméstico faz com que fique dentro da circunscrição dos apelidos da família em casa de quem serve. As vacas chamam-se e os donos das vacas apelidam-se. A vaca é "Pomba", "Estrela", "Aurora" ou "Vitória" como uma pessoa podia ser apenas José, Maria, Luís ou Judite. É a domesticidade que leva a estas designações e para evitar o opróbrio da fria enumeração. São efeitos da gentileza com facilidades para distinguir. Mas a verdade é que o fato de alguém ser Joana ou Manuel já é mais do que ser apenas homem ou mulher. Ser homem ou mulher é apenas a natureza; chamar-se João ou Manuela já é a natureza mais a vida inteira: é o problema. E se o João é Sousa e a Manuela é Pereira, então, à natureza e à vida junte-se-lhes ainda por cima a existência e complicou-se o problema.
Ser Sousa ou Pereira ou outros apelidos quaisquer é logo uma árvore genealógica tamanha que, embora o próprio a desconheça, tem sempre muito que se lhe diga.
Nós todos, inclusive os expostos, temos todos as nossas árvores genealógicas do mesmo tamanho. Lá no tamanho das árvores somos todos iguais. Mas é precisamente nas árvores que está a nossa diferença. Vê-se perfeitamente que a cada um aconteceu qualquer coisa que não se passou com mais ninguém. E aconteceu-nos antes ainda de nós termos nascido. É a árvore genealógica. Esse segredo do nosso segredo. Esse mistério do nosso mistério. Nós somos hoje o último fruto dessa árvore secular, secularmente secular! O fruto! Mas, por mais genuíno que seja o fruto da sua árvore, esta nasce tão incomparavelmente anterior à Bíblia que não se vê da árvore senão o que está mesmo ao pé do fruto, e até isto quase sempre se ignora e muitas vezes mentiu-se. Contudo, o fruto nasceu. E que é o nosso instinto senão uma memória que é nossa e que já nos pertencia antes de termos nascido? E o nosso feitio moral e o físico? E a nossa vontade? E a nossa vocação? Não vem tudo isto de longe, de tão longe que a memória viva não atinge, mas que apesar disso vem dirigindo-se para cada um de nós através de séculos e séculos, desencontrados, de altos e baixos, como se quis ou como pôde ser? Não! Não somos um fruto qualquer, somos como qualquer outro fruto.
Claro está que todo aquele que tenha a veleidade de querer servir-se da sua árvore genealógica como de uma estatística para deduzir-se não faz senão aleijar-se. Como antes se disse, é completamente impossível conhecer inteira uma árvore genealógica; o que pode é cada um possuí-la toda no seu caráter. A árvore genealógica não funciona como ciência. É mesmo o contrário de ciência: mistério! Um mistério que se espelha só em cada um de nós! Um verdadeiro mistério humano, que ultrapassa a sociedade e a ciência, que respira apenas ar de Arte e de Religião!

ALMADA NEGREIROS

Nota: 1. "Nós a chamamos de vaca e é o nome que lhe cabe melhor".

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