São Paulo, terça-feira, 18 de novembro de 1997
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A crise do pacote fiscal parece um conto de Kafka

ARNALDO JABOR
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Depois do crash das Bolsas no mundo, a Equipe Econômica de Emergência (EEE) ficou em assembléia permanente, com os técnicos fechados no imenso hall de reuniões. "O QI mais baixo ali era maior que qualquer desvalorização cambial", dissera o supervisor do FMI. O ruído nas ruas era insuportável.
Todos temiam que algo terrível acontecesse; logo, era preciso que os discursos se emendassem em cadeia, criando uma melopéia ininterrupta de frases em "economês", que os acalmasse e abafasse os gritos que vinham lá de fora.
Qualquer vírgula mais longa deixava entrar uivos e gargalhadas da praça em volta da Assembléia. O presidente aumentou um pouco o volume do som, provocando uma sutil radiofonia (incômoda, mas necessária) que matava o vazio das pausas.
Falavam para manter a sensação de que o inevitável seria contornável. Será que o pacote econômico daria certo? Que temiam aqueles homens cultos, um leque de PHDs? Algo se armava nas ruas; ouviam-se aplausos e hinos, roncos de fera, de urso, onça, o quê? Era preciso falar sem pausas.
Um pálido economista tentava ao microfone um tom isento de acadêmico, traído por suas mãos trêmulas: "Os mercados financeiros não têm o hábito de conceder aos países o benefício da dúvida!", disse, com orgulho da frase.
Outro professor, elegante e amargo, ergue a voz de barítono: "Temos de agir rápido, porque os juros estratosféricos vão explodir a dívida pública. Por outro lado, mexer no câmbio também arrebenta tudo! Teremos a ruptura do tecido social!".
A lógica das análises era impecável. Mas ninguém sabia o que fazer. Espalhados pela sala, os economistas e técnicos pensavam nas barreiras do Congresso, na lentidão endêmica brasileira, na testa curta dos fisiológicos, no rancor da oposição e na imutável Constituição de 88.
Mas ninguém ousava falar, era preciso acreditar na razão. O economista barítono continuou: "Com a queda do fluxo de 'hot money', o ajuste exige redução dos salários nominais! E logo! Senão a recessão se aprofunda e o sistema entra em colapso!".
Houve um silêncio que ninguém sabia como preencher. Os calafrios foram intensos pois, lá de fora, vinha um ruído surdo como o de um imenso bucho, um grande intestino, um pulmão sujo, arfante, cortado pela agonia de sirenes. Era o povo lá fora que eles temiam? Não. O "povo" apenas boiava nessa coisa informe que se alargava em volta do imenso prédio.
O que eles temiam? Era a oposição? Não. Ali dentro da assembléia havia vários comunas e petistas, finalmente querendo cooperar. Eles temiam algo mais brutal que vitimaria direita e esquerda. E todos falavam sem parar, para abafar os ruídos de fora.
Lá na rua se armava uma nova língua feita de séculos de silêncio, como um temporal se formando. Essa nova língua já se falava em escuros desvãos do país, em fundos de favela, em rasos de caatinga, em grotões de flagelados. Não era a fome, nem a miséria. Era mais que isso, era um derivado disso, um miasma, uma gosma que crescia, era a fundação de uma lógica de grunhidos.
Esses sinais já estavam nos grandes rituais evangélicos, no exorcismo em massa de demônios, já estava na nova ética dos comandos vermelhos, na organização do horror. Esse grande Bucho (como o apelidaram em segredo) já respirava nas ruas.
Como parecia débil a razão econômica, diante dele. Para enfrentá-lo, uma ciência nova seria construída, talvez uma nova cultura de extermínios, uma política do horror, regimes que excluíssem a esperança.
Outro economista, com grandes olheiras e um esgar de medo nos lábios, atacou:
"Sem um gesto firme nessa direção não conseguiremos estancar a fuga de capitais! Eu não temo a violência das medidas. Meu medo é a Coréia e o Japão quebrarem!".
Estouraram ruídos novos, mugidos longos como o sacrifício de mil bois. O economista-barítono voltou, falando bem alto: "Temos de controlar com mão de ferro o agregado monetário M4! Nem que seja pelo recolhimento compulsório dos depósitos!".
O economista-barítono tinha uma beleza trágica. Seus anos de poder e experiência tinham desembocado no desespero, ele sabia. Olhava aquela centena de homens de ternos cinzentos e todos pareciam irreais, dentro da névoa fluorescente das lâmpadas. Todos suavam muito, apesar do ar-condicionado.
Enquanto ele falava do "pacote" e do crash, pensava secretamente: "A Índia ao menos tem um milenar sistema de castas, uma religião auto-reguladora. Aqui, sem rituais, como será possível reger a onda de miséria que virá, depois que descobrimos que é impossível governar o país?".
Seu desejo era urrar, fugir, mas era preciso continuar falando elegantemente a língua da lógica econômica: "Precisaremos de 120 bilhões para fechar as contas e, mesmo que nos custe sangue suor e lágrimas, conseguiremos domar o monstro da inflação, essa espuma maldita que é seu recente apelido!".
Alguns sorriram, pálidos. "Deus, como sou autoconsciente e respeitado... Mas, se não der certo, de que servirá esta minha sabedoria?...", meditou entre melancólico e orgulhoso.
"Perderei o charme desta tristeza iluminada? Perderei esta 'grandeur' dolorida de que o mundo não corresponde a meus desígnios racionais? Como é elegante minha dor...", meditou ainda.
Falava sobre fluxo de capitais, mas pensava: "Talvez seja tarde demais para idéias". Um medo gelado corria por suas costas.
"Nunca incluímos o 'medo' em nossos planos. Nunca pensamos antes no Grande Bucho em nossos cálculos!" ("Eu vou para Londres...", sorriu para si). Antes, tudo parecia protegido. O Bucho já esteve afastado pelas baionetas, pelas armas. Depois, o Bucho estava à distância, afastado pela correção monetária.
Agora, nada poderia detê-lo. Súbito, o economista teve um estranho tesão pela barbárie.
Sussurrou para si mesmo: "Talvez sejamos salvos pela razão bárbara! Ela pode nos libertar desse fardo kantiano nas costas. Talvez precisemos de uma coisa mais dentária, animal, profana, feita de gritos e perseguições, uma desordem bruta e vital, com uma beleza de assassínios e religiões de sangue!".
Mas ele tinha de fazer respiração boca-a-boca com a razão. Foi enfático, com sua bela voz grave, para encobrir o sinistro ruído do Bucho lá fora, que respirava como uma fera imensa.
"Não acredito em catástrofes! Acho que o caos não chega nunca! Por isso, temos de ser otimistas! A 'mão invisível do mercado', como dizia Hayek, vai regular tudo!"
E finalizou: "Porque, se por alguma razão, tornar-se dominante a expectativa da catástrofe, essa se transformará numa profecia auto-realizável!".
Foi então que, cumprindo uma profecia antiga de Kafka (não de Alexander, do FMI, mas de Franz, em 1919), veio do céu um gigantesco punho fechado e esmagou o prédio em pedaços, com cinco golpes em rápida sucessão.

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